sexta-feira, agosto 06, 2010

- o carteiro -

Alberti e Velasquez cruzam-se no mausoléu dos artistas, isto porque Alberti, já esclerosado, se engana e em vez de descer até à cave para os banhos de substral, subiu até ao século XVII:
- Olá caríssimo, não me conhece?
- Desculpe?!
- Sou eu, o Velasquez!
- Quem, desculpe, mas acho que estou enganado. Onde está a Tatiana que me massaja às terças? Hoje é terça, não é?
- É. A Tatiana não está aqui. Isto aqui é o andar do século XVII. Eu sou o Velazquez.
- Muito prazer, mas tenho de ir. A Tatiana deve estar à minha espera com o substral e fosfatos quentes para as costas. Conserva-me o cadáver que é uma maravilha.
- Eu gosto muito do seu trabalho. Aliás até tenho umas coisas que gostaria que visse só para me dar a sua opinião...
- Não tenho tempo.
- Espere, são umas coisas... bem, na verdade eu também sou artista. Fui artista, claro! Pintor
- Pintor? E o que é que pintou?
- Pintei... Ora bem... A "Vénus ao Espelho", por exemplo.
- Não conheço. Aqui o Boas Novas também não tem grande suplemento de Cultura. Estou de desactualizado. Até leio mais o Die Zeit und Geist por causa da programação das procissões e enterros.
- Também pintei o "Retrato do Papa Inocêncio X".
- Não conheço.
- E "As Meninas".
- "As Meninas"?
- "As Meninas", é verdade... Fui eu!
- "As Meninas" seu canastrão!!!
- Canastrão?!
- Sim, canastrão. Seu calaceiro, seu Antifilo de Apelles... Ou você pensa que eu não sei?!
- O quê? Que eu pintei "As Meninas"? Pelos vistos sabe!
- Claro que sei! Anos e anos de evolução na Perspectiva Artificialis para você chegar lá e estragar tudo. Repito, tudo! Tudo não que ainda ficou alguma coisa, mas pelo que sei, a pintura nunca mais foi a mesma depois dessa calúnia à mente humana. E Humanista!
- Ouça, tenho muito respeito pelas pessoas de idade...
- Deixe estar que você também não vai para novo, ou acha que é algum Benjamin Button?
- Não percebo. O que têm as minhas "Meninas" a ver com o caso?
- Não diga isso muito alto que um dia destes o Ghiberti estava a falar dos putti do Miguel Ângelo e a Brigada Angélica levou-o logo para um mausoléu de artistas menores. Consta que anda a desenhar prados e barcos à vela.... A aguarela!
- A aguarela? - A aguarela!
- Ai Meu D...
- Xiu. Não o invoque.
- Mas de qualquer forma, o que tem o meu quadro a ver com isso?
- Pois... vocês fazem as asneiras e depois estão cá as velhas carcaças para vos explicar o porquê, não é? Eu conto-lhe. Lembra-se de Giotto e de Duccio?
- Sim.
- E lembra-se de mim.
- Claro, reconheci-o!
- Pois, sua caveira espanhola, nós os três conseguimos a proeza de inventar ou pelo menos colocar no papel e no espaço o ilusionismo perspectivista. Eu, modifiquei a teoria do espelho - da pintura enquanto espelho da realidade - para a teoria da pintura enquanto janela da realidade. A partir desse momento tudo mudou, compreende?
- Sim...
- Cale-se! Tudo mudou porque aquilo que as pessoas viam passou a estar retratado. As pessoas tinham uma outra imagem do espaço e da natureza e como tal, passaram a entender o espaço e a natureza de forma diferente. A ideia era que num quadro a terceira dimensão podia ser representada quando tudo convergia para um ponto no infinito.
- Eu sei.
- Não sabe nada, cale-se! No meu espaço, na teoria que criei para esse espaço tudo era aberto. O que você faz nas suas "Meninas" foi fechar o espaço.
- Eu?!
- Sim, deixe-me acabar. Você redefine a metáfora: de janela a pintura passa a ser caixa fechada. Ou caixa aberta, tanto faz. A pintura passa a ser caixa. Você delimita o espaço renascentista, você fecha a acção, você mostra o espaço do quadro; ou seja, você mostra o espaço que lhe interessa.
- Mas você fez o mesmo!
- Irra que ele é burro! Mas você encenou! As suas "Meninas" são uma encenação. Nada mais, a partir daí foi natural. O paradigma mudou, é verdade. Vocês no vosso tempo eram uns cartesianos. Já não se importavam com a idealização da realidade, mas antes com a realidade em si. Esvaziaram os conteúdos e focaram-se na forma, na maneira. Na Maniera, entende-me?
- Sim, assim faz sentido. Mas isso não é negativo.
- Após isso foi só abstracção e introspecção e socialismo. Pintaram com dejectos, acorrentaram animais... Venderam-se. Atente nas suas "Meninas":
- Sim.
- Tudo é codificado, como se existisse um grupo restrito de privilegiados que podiam ter acesso à pintura e depois todos os outros que não. E o pior de ser codificado é que você não o fez com propósitos espirituais, mas simplesmente por pura descrença e pelo jogo.
- E isso é mau?
- A arte é feita pelo Homem. Quando ela exclui o Homem sobra apenas a forma, a arte pela arte, vazia de conteúdo.
- Porque é que ela escreve "Arte" com letra minúscula?
- Não sei. Sei que com "As Meninas" o espaço mudou e com isso mudou toda a Arte Moderna.
- Tudo muda. Olhe para si. Se não fossem os seus estudos também não tinha havido perspectiva.
- Sim, mas você eliminou a ideia de tridimensionalidade no quadro.
- Eu?
- Claro, sua ossada andante! Quem é retratado no quadro?
- A família real espanhola!
- E quem está no meio do quadro?
- ...
- Vá diga!
- Eu...
- Pois é. Em primeiro plano, muito em primeiro plano e quase desfocado de tão próximo do observador encontram-se o cão e as infantas. O rei não está no quadro verdadeiramente; o que está é a sua representação. É a representação da representação, pois ele aparece reflectido num espelho. Ele não está lá, o que está lá é a sua imagem, o que quer dizer que quando ele sair dali o espelho está vazio. E como quem está ao centro da pintura é o pintor, como única figura visível e nítida, o protagonista é o pintor que pinta uma tela qualquer. E o que pinta ele? Quem o observa! Eis.
- Nunca tinha visto as coisas nesses termos...
- Tudo é acessório, tudo e todos são ridicularizados uma vez que são reduzidos a piadas da perspectiva. Como por exemplo o homem que se esgueira em pano de fundo. Ele é uma extensão da perspectiva encenada porque no fim de contas a perspectiva é anulada a partir do momento em que o importante na pintura está no centro dela.
- Mas isso é maquiavélico!
- E está orgulhoso?
- Mais ou menos. Subestimei-me muito.
- Não lhe adianta nada. Isto fica entre nós e estamos ambos mortos!
- Está bem, mas fica-me a consolação.
- Depois de velho e morto o que me consola...
- É a Tatiana.
- Sim, e poder dizer o que penso. E o que penso é que a sua pintura representa o vazio. Se formos a ver, nada acontece no momento em que você pintou a pintura que por seu lado retrata-o a pintar uma pintura. Você está, como personagem, à espera que algo aconteça.
- Mas o Caravaggio também encenou. Porque é que não vai falar com ele. - Porque ele preencheu o vazio, você expressa o profundo desprezo pela expressão horror vacui. Você gosta do vazio.
- E você a dar-lhe! Há algum mal nisso?
- Você abriu a Caixa de Pandora.
- Na Arte tem de existir mudança. Tem de existir evolução.
- Isso não é evolução, é involução. Evolução é a melhoria continua. Isso foi um retrocesso.
- Para onde nos levaria a perspectiva? Tudo seria sempre igual.
- E para onde nos levou esse novo lugar do espectador (observador observado) e do pintor (o pintor rei)? Formou um bando de incoerentes...
- A coerência é muito aborrecida.
- De incoerentes, repito, e de indiferentes. Tudo na Arte se tornou indiferente. Ou seja, vocês pintam com indiferença.
[Manet passa para 10 minutos com a Tatiana. Diz Velazquez:]
- Não fale comigo, fale com o Manet. Se eu comecei ele continuou! Tudo eu, tudo eu...
- Ó Sr. Manet!
- Sim, chamou? Ah meus caros, não me posso atrasar. Tenho uma massagem aos ilíacos dada pela Tati. Quem sabe se ela não me massaja aquilo que um dia foi a minha próstata...
- Tenho uma pergunta a fazer.
- Faça. Rápido.
- O senhor conhece aqui a obra do Sr. Velazquez?
- Não conheço eu outra coisa. Até me chamaram "espanholista". Adoro os espanhóis. Quer dizer, os pintores espanhóis. As espanholas me encantam...
- Como assim, "espanholista"?
- De forma muito sucinta, interessei-me pela pintura de Goya, do nosso caro Velazquez, de Murillo... E fui, à semelhança dele, apercebendo-me dessa fantástica arma que é o quadro. Mudei o lugar do espectador, embora no Salon nunca tivessem gostado muito da forma como pintava. Opiniões...
- E mais?
- Mais... Pintei o "Almoço na Relva" e "Bar em Folies- Bèrgere", dois quadros que mostram a retração do espaço. Tanto em um como no outro as personagens ficam na boca de cena, como numa encenação, como no teatro.
- E isso deu-lhe prazer?
- Gosto de desafiar as convenções. Era convencional pintar todos os planos. No "Bar..." existe apenas um pois aquilo que se vê atrás não existe, é o reflexo do que existe, percebe? Se amanhã de manhã for lá, nada daquilo existe. Como o quadro é uma caixa e tudo se desenrola no primeiro plano, o espectador sente a pulsão de olhar os pormenores em pano de fundo, mas imediatamente arrasta o seu olhar para o exterior. É como uma montra de loja.
- Mas vocês ficaram loucos! Vocês eram loucos e eu aqui fechado a ver a eternidade passar. Vou já fazer uma história da arte.
- Da "Arte".
- Da "Arte", nova a partir de ... a partir de mim que é para não existir... não, espera... a partir do Miguel Ângelo e do Leonardo por causa dos turistas. Tenho de arranjar um lugar com menos destaque para vocês... Estava a pensar em colocá-lo a si, Manet a pintar meninos com a lágrima no olho. E a si, Velazquez, a pintar Últimas Ceias. Sem espelhos, ambos!
- Pode até ser Sr. Alberti, mas antes terá de falar com o Cézanne...
- E com o Duchamp...
- Com o Mondrian...
- Esses todos?
- Sim. E mais alguns que estão vivos.
- Tu queres ver que vou ter de ressuscitar?

2 Comments:

Blogger João Barbosa said...

curti, mas achei que termina abrupto e um pouco previsível.
.
é quase perfeito. boas considerações (mas quem sou eu para achar? é só uma opinião... nada mais)

6/8/10 3:42 da manhã  
Blogger Belogue said...

Caro João Barbosa:
então "curte textos".
Sim, foi abrupto e previsível, mas o meu problema são os começos e os finais. O "recheio" corre-me bem

11/8/10 7:40 da tarde  

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