sexta-feira, agosto 06, 2010

- ars longa, vita brevis -
hipócrates

antes e depois ou como eu sabia, eu bem sabia que estas coisas andavam ligadas. Eh pá, às vezes até me surpreendo comigo... Quando vi o "Feios Porcos e Maus", na parte em que o Giacinto conhece a Isidre, lembrei-me de que aquela imagem, aquela cena em particular em que ele encosta a cabeça ao peito dela já estava retratada. Não sabia por quem, mas tinha quase a certeza que se tratava de Rubens, Rembrandt ou Caravaggio e que o quadro seria uma Caridade Romana ou um Sansão e Dalila. Como nas caridades ela geralmente está a amamentá-lo, apostei num Sansão e Dalila e não me arrependi. Digam lá se o quadro de Rubens não está parecido com a cena do "Feios Porcos e Maus"; ou vice-versa, uma vez que o filme é posterior ao quadro. Pronto, podia estar melhor, mas não encontrei melhor, nem mesmo os Sete actos de Misericórdia do Caravaggio estavam parecidos. O filme é uma paródia e uma visão irónica da bela cidade de Roma que não é nem feia, nem porca (agora está pior um bocadinho) nem má. Todos os seus intervenientes vivem na miséria, comem do lixo, fornicam como coelhos e mesmo assim têm a melhor vista sobre a cidade. Nem mesmo quem vive num dos apartamentos lá em baixo tem a mesma paisagem que quem vive nos bairros de lata. Note-se igualmente a ironia e premonição de alguns pormenores como a forma como as crianças eram todos os dias aprisionadas e aquilo que isso faz delas condicionando-as logo ao fracasso, a forma como a sociedade patriarcal e pobre convive com a traição e os maus-tratos por falta de opção. É uma antevisão dos tempos que vivemos hoje, numa altura em que se achava que com uma Europa em ebulição com a conquista de direitos femininos, preocupações ambientais e movimentos pacifistas, tudo caminhava para a utopia hippie. A escapatória possível, pelo menos para as mulheres, o momento de liberdade e emancipação é atingido quando ficam prenhas e nesse momento é quando já não têm possibilidade de libertação do ciclo vicioso em que vivem.
O quadro de Rubens (hoje comecei pelo fim) foi pintado em Antuérpia quando Rubens se encontrava ao serviço do Arcebispo. Foi também para um mecenas que pintou este Sansão e Dalila; para Nicolaas Rockocx mais concretamente. O quadro é muito grande o que representa trabalhos acrescidos quanto à perspectiva. A cama onde o casal se encontra, por exemplo é trazida a primeiro plano, mas está ligeiramente "descaída" e projectada para a frente, o que cria o efeito de perspectiva e confere espaço ao quadro, fazendo crer que existe uma porta à direita e mais aposentos à esquerda (a velha senhora está cortada pelo quadro). Neste quadro com um tom dúbio - é ao mesmo tempo um quadro com alguma bonança, mas com ameaças de tragédia - há dois focos de luz: um que vem de uma provável lareira que ilumina o cabelo e o rosto de Dalila. O outro vem da lanterna dos soldados filisteus. Como sabemos esta história tem origem na Bíblia e Sansão, tal como outros homens representa o poder da carne sobre o espírito, aqui na sua alegoria mais imediata que é a de um homem que se apaixona por uma mulher que o leva à tragédia. Não que ela fosse uma pecadora, mas porque toda a beleza tinha uma conotação demoníaca. À excepção das mulheres próximas de Jesus como Maria ou Maria Madalena, toda a beleza física é punida como se de pecado se tratasse. Esta temática dos homens corrompidos por mulheres surge com maior premência na arte do século XVI. O que acontece aqui no quadro pintado de Rubens é que ele lhe acrescenta, recriando desta forma a história, uma alcoviteira que não existe no original. Para além desta alcoviteira que patrocina o encontro trágico, os amores de Sansão e Dalila são corroborados pela estátua de Vénus e o Cupido que encima a cena principal (podemos vê-la entre a cabeça da velha e do homem que corta o cabelo a Sansão:
Pieter Pauwel Rubens
Samson and Delilah
1609
National Gallery, Londres
Ettore Scola
Feios Porcos e Maus
1976

4 Comments:

Blogger João Barbosa said...

bem apontado!

6/8/10 3:45 da manhã  
Blogger AM said...

esse filme é um espanto

6/8/10 10:46 da tarde  
Blogger AM said...

não sei de quê
mas é um espanto

6/8/10 10:46 da tarde  
Blogger Belogue said...

Caro João Barbosa:
é daquelas vezes em que uma pessoa está para aí virada. Correu-me bem, foi o que foi.

Caro AM:
Eu também achei. Faz muitos realizadores de agora corar com a ousadia.

11/8/10 7:42 da tarde  

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