quinta-feira, julho 16, 2009

- ars longa, vita brevis -
hipócrates

Como estava a dizer, há uma história muito boa e coerente (coerente porque geralmente parece que se procura uma justificação à posteriori no campo da arte por parte de quem aprecia e por parte de quem cria) sobre o uso de batik em algumas obras de Shonibare, como estas que aqui vemos e que integram uma série dedicada à instalação e ao uso de modelos para retratar a três dimensões personagens de pinturas conhecidas (aqui).
Não vou escrever a história da vida dele, mas adianto duas ou três coisas que são úteis. Yinka Shonibare é de origem nigeriana, mas aos 16 anos foi morar para Londres para concluir os seus estudos. O pai, advogado, preferia que não tivesse seguido artes, mas Shonibare tornou-se não só artista, como artista no reino de Sua Majestade (a Nigéria foi colonizada por Inglaterra) e Membro do Império Britânico, como já foi dito no post acima. Quando tinha 19 foi acometido por uma doença viral rara que lhe afectou a coluna e o deixou temporariamente paralisado. Hoje, e após fisioterapia, continua paralisado de um dos lados do corpo, a partir da cintura, mas consegue. Shonibare não faz por mostrar nem por ocultar: nas fotografias da série "Diary of a Victorian Dandy" aparece sempre em posições que disfarçam a sua condição física, mas afirma-se, no seu C.V. como incapacitado físico. O seu método de trabalho, apesar das dimensões e posições grandiosas daquilo que vemos dele, é também realizado por fases, à medida das suas capacidades. Trabalha geralmente em pequenas dimensões e depois, com a ajuda de outras pessoas, amplia e monta o que tem na sua mente. Este trabalho minucioso também nos leva a uma constatação no trabalho que aqui mostramos: Shonibare está atento aos pormenores e ao pensamento lateral.

Enquanto na série Diary of a victorian Dandy" ele se colocou na pele de um Dorian Gray negro, subvertendo a noção que temos da raça e do poder (nas pinturas vitorianas o negro é aquele que serve e não o que é servido), neste conjunto de paródias individuais à arte vitoriana ou de países que foram abertamente colonialistas Shonibare procurou dar resposta à pergunta: o que é a Arte Africana? Claro que chegamos ao fim sem uma resposta, mas ficamos pelo menos com a noção de que a arte, mesmo a de origens mais remotas é fruto da globalização. Shonibare percebeu que era um nigeriano com fortes raízes em Londres, praticamente um londrino, membro do império britânico segundo Isabel II. No entanto não deixava de ser um nigeriano, colonizado. Para além disso, recordava com nitidez a rigidez de Tatcher ao querer recuperar os valores vitorianos. Mas a sociedade já não era a mesma, já não podia pensar como um "escravo". Um dia, numa visita às lojas de batik de Londres, viu que os tecidos que utilizada para algumas das suas criações eram de origem holandesa e tinham como destino a Indonésia (a Holanda colonizou a Indonésia). No entanto, os padrões feitos industrialmente pelos holandeses não foram aceites pelos indonésios que não se reviam nem nas cores nem nas formas. Os holandeses aproveitaram o produto e começaram a vendê-lo aos países da África Ocidental que os aceitaram muito bem. A Inglaterra, vendo o sucesso destes produtos em terras suas começou também a produzir em Manchester estes produtos "identificativos" da cultura africana. Os batik não são um produto feito por e para africanos, mas uma forma de escoar produto. Shonibare gostou desta viagem do produto, desta sensação de autenticidade e respeito que as pessoas tinham perante os batik e utilizou isso nas suas obras.

Cortou-lhes a cabeça por duas razões: uma para brincar com a Revolução Francesa (razão que não me parece ter muita piada), e outra, para que a questão da raça não fosse relevante. Como não vemos o rosto, nem a cor da pele, não julgamos. Cobriu em seguida os modelos, nas posições referidas, com os mesmos modelos, mas estes com padrões diferentes; ou seja, cobriu-os com batik. Ele dá assim a dupla sensação de falsificação e questiona também duplamente a arte africana. Por um lado falsifica quando coloca em três dimensões o que só conhecemos em duas, por outro, quando cobre com tecidos africanos as roupas destas personagens. Questiona a arte africana porque mostra que ela é produto da globalização e porque mostra que cultura africana se baseia numa falsa identidade africana.