- o carteiro -
Esqueça a Playboy; Eis a Idade Média!
O românico foi talvez o movimento artístico, e com consequências políticas e sociais, mais longo da História da Arte. Há quem balize o românico no século XII, mas desde o início do milénio que uma nova ordem medieval se estava a preparar, movida essencialmente pelo medo do juízo final, pelas mudanças climáticas e pelo enriquecimento da população. No século IX e X assistiu-se ao aumento da temperatura o que permitiu o cultivo de mais espécies e melhores condições de consumo das mesmas, bem como melhores condições de vida. Quando no século XIV a temperatura global voltou a descer, foi quando a Peste Negra se fez sentir. Pessoas com mais e melhor alimento eram pessoas mais realizadas, menos preocupadas com a sobrevivência e até, em certos casos, pessoas com capacidade para escoar aquilo que produziam. O Clero era o beneficiado uma vez que para além de produzir muitos dos alimentos que consumia, vendia-os e ainda era o centro de receitas pois recebia o dinheiro gerado à volta das peregrinações. As grandes rotas de peregrinos que no final do século X chegaram invadiram a Europa, movimentou uma indústria a eles dedicada, uma indústria turística, bem como indústrias alternativas constituídas por prostitutas, taberneiros, saltimbancos e alguns charlatães que conseguiam à custa da expiação do pecado dos outros, fazer algum negócio.
A Igreja no entanto não pode ser desresponsabilizada do seu papel económico, uma vez que durante grande tempo os centros de decisão estavam nos mosteiros: o medo da morte impelia as pessoas a patrocinarem obras e a construção de raiz de igrejas e ermidas, e contribuírem para a edificação de mosteiros, como pagamento de um lugar no Céu. Estas pessoas não eram apenas nobres, mas também os novos-ricos que graças às já referidas condições climáticas tinham conseguido melhorar a sua fortuna. A mesma indústria turística que criou as aberrações e os pecados para os peregrinos, criou o grande movimento de trabalhadores de pedra e artesãos que ajudaram a melhorar a rota de peregrinação – a torná-la mais comercial – e alertaram aqueles que podiam investir nas igrejas.
Quando os centros de decisão deixaram de estar nos mosteiros para se concentrarem nas cidades, essas sim, grandes geradoras de dinheiro (os Mosteiros geravam o seu dinheiro através da troca directa) devido à forma como exportavam produtos ao gosto dos peregrinos e importavam o que tinham em excesso, a Igreja mostrou o seu desagrado por esta exploração. Através disto as monarquias faziam as pessoas acreditar que religião e capitalismo estavam de mãos dadas, o que não era verdade. Os cristãos viam o capitalismo como uma forma de Judaísmo uma vez que foram eles, os Judeus que emprestavam dinheiro, que acusaram Jesus. Esta foi uma das razões para a Igreja tentar afastar-se na iconografia românica das imagens de luxo e foi também uma das razões, quando subvertida uns séculos mais tarde, pela qual a Reforma protestante teve início. O poder de cisão passou das mãos das grandes e ricas Ordens religiosas para as mãos do Clero urbano e burguês, principalmente os Dominicanos que implementaram a Inquisição e que usavam essa forma de poder como razão para verterem sangue.
Ao contrário do que se pensa, a Idade Média não foi a época das trevas, mas pequenos momentos como do aparecimento da Peste Negra ou a Inquisição fizeram dela uma parte inesquecível da História pelas piores razões. Parecia haver uma sede de sangue. Outro exemplo dá-se com as Cruzadas: aparentemente com um bom propósito, o de cristianizar ou pelo menos levar a “Palavra de Deus” a todos os que não a conheciam, começou a ser um acto de obrigatoriedade, forçado e nada de acordo com as Leis de Cristo. A Igreja militante praticou crimes como o genocídio, o assassínio, a tortura e a mentira em nome da Inquisição. Os principais visados foram os Judeus e os descendentes do Islão, Islão esse que demorou cerca de 1000 anos para responder na mesma moeda.
A iconografia românica que vigorava nas igrejas, era, como já sabemos, didáctica. Tinha uma visão muito dual, entre o Céu e a Terra. Mas por volta do século XII novas directivas chegaram. Se até aí Cristo era representado, na escultura, dentro da Mandorla, como um ser triunfante, a adoração de Nossa Senhora e a ascensão das ordens mendicantes fez com que a representação de Cristo fosse muito mais sofrida, ensanguentada: já não era o Cristo que venceu a morte, mas o Cristo de cedeu a vida por nós. A partir daí toda a arte, principalmente a escultura, tornou-se muito sofrida e este sofrimento estendeu-se à vida: o sofrimento auto-infligido ou natural era meritório.
Para além dos tradicionais temas bíblicos a escultura românica adoptou uma temática pouco conhecida, mas muito discutível que englobava duas categorias: as dos monstros e seres mitológicos e a dos pecadores, directamente ligados à indústria turística das peregrinações, como as já abordadas actividades de contorcionista, acrobata, prostituta, proxeneta e até músico. Estas últimas figuras ficavam geralmente retratadas fora dos templos, em mísulas, a suportar mísulas ou a fazer a vez das decorações das mesmas, mas quase nunca no interior. Se no interior, nunca em portais ou capitéis de relevo. Antes do aviso de São Bernardo era comum vê-las no interior das igrejas, o que, segundo o santo, distraía os fiéis. No século XIII os conjuntos de mísulas deixaram o exterior da igreja, onde eram muito vistos devido ao facto de toda a actividade económica e mesmo social se realizar no exterior dos locais de culto e passaram para lugares mais discretos do interior. Mesmo as gárgulas e todo o vocabulário grotesco começou a ser tido como uma forma de diversão para elites e por isso aplicado em lugares muito específicos como as misericórdias (parte interna do banco do coro onde as religiosas se apoiavam durante os ofícios).
Igreja de Rathcline, Longford
Igreja de Fontaines d'Ozillac
Com o aumento da força e influência do papado a Igreja tornou-se ainda mais rica e ávida de bens e dinheiro. Era talvez o sector de actividade onde a corrupção era mais visível. Se as imagens mais grotescas foram perdendo força, a força do sexo foi sendo cada vez mais temida e calculada. Há portanto duas classes de representação de imagens sexuais dentro das igrejas. Uma, muito variável até ao século XII, XIII, primeiramente colocada no exterior dos edifícios e depois no interior, em locais mais recônditos e de acesso condicionado (como forma de divertimento dos mais poderosos e instruídos) e outra directamente relacionada com as Sheela-na-gigs, imagens de origem irlandesa de mulheres esculpidas em edifícios religiosos ou castelos, com uma vulva exageradamente grande e sempre aberta, mostrando por vezes o clítoris ou exibindo até esgares faciais de origem oriental. Estas imagens espalharam-se ao resto da Europa (principalmente a França, a Espanha e um pouco à Alemanha) e eram consideradas uma subclasse das figuras exibicionistas apesar da sua aparência crua e séria.
Igreja de Saint-Forte-Sur-Gironde
Há quem defenda que a sua colocação no interior das igrejas tenha servido para paganizar as igrejas, exercendo uma espécie de magia que dissuadia os maus espíritos ou os invocava para exorcizá-los. Por isso foram mais tarde colocadas junto de janelas ou portas para impedir a entrada de espíritos. Há quem defenda que eram apenas uma forma de adquirir estatuto dentro da representação religiosa da escultura. Há também quem pense que eram uma representação da Igreja e da Religião como nomes femininos. Algo ajuda nesta teoria: o símbolo de Cristo, o peixe e a Sua representação dentro da Mandorla, assemelham-se muito à forma de uma vulva. Na arte oriental este símbolo é usado para representar os genitais femininos.
Yonic, símbolo oriental
Cristo na Mandorla
Símbolo de Cristo (em grego é ICHTHUS, o acrónimo de Iesus Christus Theou Yicus Soter; ou seja, Jesus Cristo Filho de Deus Salvador)
E há ainda quem diga que as Sheela-na-gigs presentes nas igrejas românicas eram já caricaturas do grotesco e por isso não tinham nem a graça nem a capacidade para perturbar fosse quem fosse. Exerciam apenas uma alguma insensatez momentânea em quem as observava. Seja como for, parece-me muito estranha a presença destas imagens no interior das igrejas numa altura em o sexo era, mesmo dentro do casamento, uma necessidade de continuação da espécie, segundo a explicação oficial. Por isso toda a manifestação amorosa fora desse contexto marital era punida. Interessa também referir que foi nesta altura que a Igreja aceitou a realização de casamentos heterossexuais dentro do edifício religioso e por isso era frequente em capitéis e peanhas a presença de cenas de fornicação entre homem e mulher em várias posições e às vezes em práticas mais ousadas como a zoofilia. Mas talvez pela crescente perda de interesse pela Avareza e Luxúria (pecados a que a própria Igreja se converteu), estas imagens às vezes surgiam em locais menos escondidos e mais próximos do altar, como é o caso desta representação de uma mulher nua num dos quatro pendentes que segura a cúpula, abrindo a vulva para o altar.
Igreja de Civray, Vienne, França
A representação masculina nestes preparos não era muito rara nesta época (e sobre ela iremos falar na segunda parte do post), mas só durante o século XI e XII. Depois disso deixou quase de se ver a exibição em mísulas de homens com genitais protuberantes.
[link]
6 Comments:
http://www.festivaleroticomedieval.com/
perdoa, nao tinha ainda reparado que já tinhas referido este maravilhoso festival ;)
quanto ao conteúdo, não posso comentar por não ter informações, só leio e aprendo. no entanto nao colocaste o nosso bem portuguÊs "anjinho" da igreja de nossa senhora da oliveira, em guimarães, ao qual nao encontro referência nenhuma na net. Nunca lhe consegui tirar fotografia de jeito por estar muito alto, mas a posição em que se encontra não deixa lugar a dúvidas quanto à imaginação do escultor.
Este comentário foi removido pelo autor.
Oi Beluga.
Aqui em terras tupiniquins, uma pequena editora (editora degustar, assim tudojunto) lançou uma coleção de literatura antiga erótico-pornográfica (em verdade, os que vi eram bem mais pornográficos que eróticos): livros como o Cazzaria, Pornólogos, Erotologia Clássica, etc.
Alguns já saíram, mas, na verdade, aguardo "ansiosamente" (mas até agora nada de sair) o Tratado Medieval do F***r.
Os que vi não eram exatamente um primor literário, mas me fizeram dar gargalhadas com conversas entre órgãos sexuais explicando porque isto é assim, é assado, acolá, etc.
Um post muito bom, parabéns.
Cara Ana:
Vi este "maravilhoso festival" no JN. E pensei em outras iniciativas: o Festival gastronómico do Sudão, o Festival Sado-Maso Da Sardinha e o Festival Dominatrix de Sendim.
Quanto ao resto (que é o mais importante), ainda não conheço tal anjinho, mas de certeza que caminha para pecador! Um destes dias, nos nossos périplos colturais, teremos de fazer um inbento em Guimarães.
Caro Brontops (de onde deriva o nome?):
Por aqui por terras lusas não tenho visto nada disso, mas vou ficar atenta. É provavel que a Ana saiba...
Tenho é aqui, lembrei-me agora, um livro sobre o Nascimento ao longo dos séculos. E também já me ri. Mas acima de tudo, espantei-me: um dia destes li que antes de o homem saber que os bebés eram o fruto de uma cópula, que eles tinham intervenção no nascimento de uma criança, acham que as mulheres eram dotadas de um poder extremo. Por isso as sociedades eram matriarcais. Só mais tarde é que as coisas mudaram.
Obrigada pelo comentário e quanto ao post, tem um link em baixo que me ajudou a escrevê-lo. Já tinha visto estas imagens do Canal de História e fiquei curiosa. Não é fácil procurar na internet exibicionistas medievais sem levar com imagens de jogos com princesas nuas e coisas do género.
Sim, na Idade Média e mais tarde no Renascimento o retrato do acto sexual era muito pronográfico.
...Um dia destes explico o nome.
Lembrei de mais uma coisa: adquiri faz uns anos uns volumes de uma banda desenhada (história em quadrinhos, aqui deste lado) publicada pela Meribérica, mas de origem francesa, chamada Companheiros do Crepúsculo sobre um trio de "párias" medievais.
O terceiro volume conclui a série e a história se passa numa cidadela e um motivo se repete em várias imagens da catedral: a de uma sereia de duas pernas, toda "escancarada". Vou ver se acho isto e passo mais informações, se desejar, é lógico.
Fora isto, também me recordei de um livro de Jacques Goff, no qual mencionava-se a existência de uma "tabela" para ser usada nos confessionários medievais com vários "pecados". Entre os pecados estava o de se colocar um peixe vivo nas partes das mulheres... Não lembro se havia alguma ideia de feitiço para "amarrar" homem ou se era simplesmente uma ictiofilia (não sei se existe o termo)
Abs
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