- ars longa, vita brevis -
hipócrates
antes e depois ou um "tu én one" que é como quem diz, "dois em um" (este post dará o mote a um pequeno "carteiro"). O retrato pintado por Gainsborough em 1748 é o de Mr and Mrs Andrews que tinham casado nesse mesmo ano. Os nubentes e a paisagem formam um conjunto de antíteses relacionadas mais com o estilo do pintor que não era considerado, à altura, um dos preferidos (era um pintor de recurso para mecenas que não tinham muito poder económico), do que com o gosto dos mecenas em si. Estes apenas pagavam para ver uma bonita cena em cima da lareira. Ainda no que concerne ao estilo devemos recordar que este tipo de retrato a longa distância com a inclusão de elementos paisagísticos era comum nos primeiros trabalhos de Gainsborough, enquanto o pintor habitava Suffolk ( a sua cidade natal), depois do seu regresso de Londres.
O cenário é Auberies, a quinta do casal em Sudbury, mas eles provavelmente nunca estiveram lá, naquela posição a posar durante horas e horas para o pintor, com o mesmo semblante ameno e corpo gentil, posição esta que era recomendada nos manuais de boas maneiras da época. É igualmente provável que a paisagem não seja a original, mas que tudo junto seja uma composição fruto da imaginação do pintor. Passo a explicar: Gainsborough utilizava manequins artificiais (de madeira) vestidos com os trajes, pelo menos aparentes, dos retratados e estudava estes e a paisagem separadamente. Mr Andrews tem um mosquete debaixo do braço, mas não tem caça pendurada no cinto. Mrs Andrews tem as mãos pousadas sobre o colo, mas (e até parece que Gainsborough se esqueceu de pintar aquela zona) nem lê um livro nem segura a caça do marido.
É como se esta falha espelhasse a distância entre os dois não obstante as recentes núpcias. Mas há outras relações que podemos estabelecer: a satisfação de proprietário expressa no rosto de Mr Andrews é também a do pintor em poder contrabalançá-la com os dourados da paisagem; as curvas sinuosas da terra fazem pendant com as curvas sinuosas das nuvens, as figuras à esquerda parecem observar aquela ordem natural impenetrável. As mesmas figuras mostram um ritmo e comunhão com os restantes elementos da sua ordem que é quase poético: vejam como a curva do vestido é paralela à curva do braço do banco onde se encontra sentada Mrs Andrews. E como os seus sapatinhos bicudos acompanham o mesmo movimento e encontram terra da mesma forma que o pé do banco. E vejam como o calçado robusto de Mr Andrews combina com as raízes da árvore que vêm à superfície na zona onde ele se encontra.
Há ainda linhas de força que não podemos ignorar: o focinho do cão, a arma, as calças e o braço de Mr Andrews fazem uma diagonal que concorre com outra diagonal que passa pela cauda do casaco, pelo braço, ombro e vai ter ao ponto mais alto do seu chapéu tricórnio. Esta ponta toca na outra ponta do chapéu - a que se encontra à direita - e as duas são pontos de uma linha que termina no olho oblíquo de Mrs Andrews.
Tomar estas e outras pinturas e recontá-las segundo a fotografia e novos materiais foi um dos objectivos de Shonibare, o artista nigeriano que vingou em Londres. Não é a primeira vez que Shonibare coloca em outro contexto imagens icónicas da cultura da época vitoriana ou mesmo de algum país colonialista. Já uma vez se deixou fotografar para "Diary of a Victorian Dandy" a interpretar cenas totalmente teatralizadas que pretendiam mostrar o ponto de vista do colonizado. Um dia o artista deu com ele a pensar que era nigeriano, mas residia em Londres. Que era um negro influenciado por uma cultura para brancos e que tal como os dândis, era uma "curiosidade social". Note-se que Shonibare tem no fim do seu nome as iniciais M.B.E. o que quer dizer que foi feito Member of the British Empire pela Rainha de Inglaterra. Irónico, não é?Neste trabalho em que procurou dar uma roupagem (sem cabeça!) a cenas importantes da nossa cultura visual, o artista tinha em mente outra pergunta: "o que era na realidade a Arte Africana?" E isso será outro post.
Thomas Gainsborough
Mr. and Mrs. Andrews
1748-1750
National Galery, Londres
Yinka Shonibare
Mr and Mrs Andrews Without Their Heads
1998
National Gallery of Canada, Ottawa
2 Comments:
mula sem cabeça!?
não sei se disse no post abaixo, mas ele tirava a cabeça dos manequins para que as pessoas não julgassem mal segundo a cor de pele. Será que o Shonibare sabe da existência dessa expressão? Temos de lhe dizer!
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