este post bem podia intitular-se "diz-me que cão tens e dir-te-ei o teu grau nobiliárquico". Mas não. Vai chamar-se "onde há cães, há pulgas", um provérbio a sério (o outro era adaptado) e que não deixa de ser verdade porque naquele tempo as pessoas não eram muito amigas do banho.
"onde há cães, há pulgas" (olha... isto seria um bom provérbio para Islão justificar a sua repulsa por cães. Chiça, ainda bem que eu não professo).
Primeiro comecei por achar que a presença de cães nas pinturas tinha qualquer misticismo associado. Um simbolismo "códigodavinciano", mas com bom gosto. Depois deixei-me disso porque percebi que não havia simbolismo imperceptível: o cão nas cenas caseiras tinha como o objectivo torná-las mais caseiras. Qual é a família posta que não tem uma Última Ceia na parede, bebés lesmas no chão e um cãozinho a coçar-se ou a lamber as partes pudibundas (eu sei, estou a ser má)? No entanto (porém, contudo...), havia quadros onde esta presença não se justificava: o retrato real. O que é que tinha a ver um cão no colo de um monarca. Se o monarca simboliza o poder divino (no caso do Absolutismo) e se a monarquia se serve de toda uma série de rituais e reserva para si um conjunto de privilégios, qual a razão para ver reis e rainhas em trajes catitas com um cão ao colo - prerrogativa que poucos humanos (às vezes nem mesmo os filhos) tinham? A razão é simples (depois de descoberta, é simples, claro). É que mesmo os cães são um símbolo de poder. Ou vocês pensam que os membros da monarquia posavam com qualquer rafeiro mal engendrado. Não senhor! Tudo com caninos com pedigree e raça reconhecida nos anais e nos quadros, que são como os anais (detesto esta palavra). A Monarquia preferia os cães de pequeno porte, miniaturizados, segundo se pensa a partir dos cães de grande porte. Os Greyhound italianos e as Miniatura Spaniel são versões mais pequenas do original. Eram esteticamente agradáveis, eram pequenos e por isso cabiam em qualquer colo e não faziam grandes asneiras. Eram portanto, cães decorativos. Hoje está provado que, mais do que serem decorativos, eram cães com capacidade para desenvolver afectos por humanos para além de terem um efeito benéfico sobre os idosos, os doentes e os deficientes. Em certos casos conseguem mesmo acelerar o processo de recuperação ou atenuar uma depressão. Mais, afagá-los pode diminuir a pressão arterial. Além disso, são tão protectores em relação aos donos, que os latidos estridentes afastam qualquer intruso (tamanho não é qualidade). Mas nem todas as raças foram desenvolvidas com o objectivo de decorar: o Spaniel Tibetano foi usado para rodar as caixas cilíndricas com orações gravadas, a troco de uma moeda. O Turnspit, como o nome indica foi criado para fazer rodar o espeto no qual se assava um animal de caça. Entre os principais apreciadores, coroados, de cães realçamos a Rainha Maria da Escócia, a Rainha Vitória, Maria Antonieta, Madame Pompadour e Alexandra da Rússia. Mas já antes destas datas, na Idade Média era relativamente comum as pessoas levarem os seus pequenos cães à missa para estes lhes aquecerem os pés.
Uma das raças mais divulgadas e preferida pela monarquia europeia era o Bichon Frise que chegou à Europa vindo das ilhas Canárias, por volta do século XIV. No século XVI os Bichon Frise eram o "must have" das cortes francesas, que apreciavam igualmente raças de pequeno porte. os cães de grande porte eram usados para caçar, nunca para posar. Excepto se o retrato pretendia dar a conhecer os dotes de predador do retratado. Foi com Francisco I de França e Henrique III (também de França) que os Bichon Frise tiveram o seu auge. Diz-se até que este último, o rei Henrique III gostava tanto do seu Bichon que o levava para todo o lado numa espécie de cesto que trazia ao pescoço preso por laçarotes. Como tudo o que o rei faz, os outros fazem, foi natural o aparecimento do Bichon Frise em outras cortes com um tratamento mais próximo do dado a uma boneca do que a um animal: o cão era mimado com massagens, perfumado e enfeitados de tal forma que os Bichon deram origem a um verbo; o verbo "bichonner" (que quer dizer "pôr-se bonito/a", "cuidar-se"). A moda dos Bichon Frise passou na corte francesa dos períodos referidos, mas voltou um pouco mais tarde com a corte de Napoleão III e era o preferido de muitos artistas.
Goya
Les Jeunes or the Young Ones
1812-14
Musée des Beaux-Arts, Lille
Goya
The Duchess of Alba
1795
Collection of the Duchess of Alba, Madrid
Goya
The Family of the Duke of Osuna
1788
Museo del Prado, Madrid
Ticiano
Federico Gonzaga, Duke of Mantua
1529
Museo del Prado, Madrid
Os Brussels Griffon , são cães de origem belga que vêm do Griffon Anão. Há variedades da Bélgica, de Brabante e de Bruxelas que se distinguem pela cor do pelo e pelo feitio do mesmo. (para perceber melhor a raça, ver o link). Como não podia deixar de ser, era o cão preferido do Rainha Astrid da Bélgica. Durante a Segunda Guerra Mundial esta raça esteve quase extinta, mas devido ao envolvimento da família real belga na criação de clubes dedicados aos griffon criados por iniciativa régia nos Estados Unidos e em Inglaterra, foi possível, depois da guerra, recuperá-la. Algusn criadores ingleses fizeram o necessário para reavivar a presença dos Brussels Griffon. Hoje a raça já é mais conhecida e podemos vê-la no filme "Melhor é Impossível" (lembram-se do cão do vizinho que Jack Nicholson atirou pela conduta do lixo?).
Rainha Astrid da Bélgica
Uma das rainhas mais dedicadas aos cães foi a Rainha Vitória, e entre os muitos cães que criou estava o Pug. Como aquilo que o rei usa é lei, os pug eram obrigatórios em qualquer casa de sociedade que se prezasse. Entre os vários apreciadores reais da raça estão, para além da Rainha Vitória, Henrique II de França, Maria Antonieta, a Imperatriz Josefina e uma cabeça não coroada, mas nem por isso menos importante: o pintor William Hogarth ("Trump" era o nome do cão do pintor que ele incluiu em vários trabalhos). O seu ponto de origem foi o Oriente, mas foram trazidos para Ocidente por mercadores que faziam a rota que passava pela China e mais curioso é que o seu nome, Pug, é uma palavra antiga que tanto quer dizer "duende" como "nariz arrebitado" ou "macaco pequeno". De facto uma das características do Pug é o seu focinho achatado. Na corte inglesa os Pug entraram pela mão de William III e pela Rainha Maria II da Escócia quando esta regeu o reino em 1689. Outros criadores famosos de pug foram a duquesa Charlotte of Mecklenburg-Strelitz, esposa do Rei Jorge III, que como alemã mantinha na corte inglesa pugs de origem alemã. Mas quem gostava mesmo dos Pug era a Rainha Vitória que tinha em Bully o seu cão preferido.
Hogarth
The Painter and his Pug
1745
Tate Gallery, Londres
Goya
Marqueza Pontejos
1786
National Gallery of Art, Washington
Mas aquela raça que mais prazer deu a investigar e a que acabou por dar o empurrãozinho que faltava para escrever este post foi a Cavalier King Charles Spaniel. Andava eu, já no tempo dos posts sobre a história da moda, a investigar como se vestia o rei Carlos qualquer coisa de qualquer lado, quando percebi que ele era muito parecido com um cão. Mas deixei-me estar. Em conversa com uma criadora de Labradores me mostrou o King Charles (cão). O King Charles tem o nome que tem devido ao rei Carlos II de Inglaterra, embora já existisse em outras cortes europeias. Mas é de facto com este monarca que o cão adquire o nome pelo qual viria a ser conhecido. O rei fez questão de ser pintado com os seus King Charles por Van Dyck. Já antes o pai de Carlos II, o rei Carlos I mostrou o seu afecto pelos cães, raramente era visto sem o seu King Charles, e passou-os aos filhos, como vemos na imagem. O filho Carlos II gostava tanto dos King Charles que decretou que cães desta raça não poderiam ser proibidos de entrar em nenhum lugar público, incluindo a Casa do Parlamento (Palácio de Westminster). No entanto, tanto a rainha Isabel I como a sua rival “Mary, Queen of Scotland” foram proprietárias de pugs. Existe até uma história que diz que a rainha Maria os mantinha por perto mesmo nos seus momentos mais íntimos. Não terá sido um momento íntimo, com o povo a vê-la ser decapitada, mas também se diz que depois de ser decapitada o executor descobriu um pug a sair da saia da rainha, ainda um pouco sonolento. Conta a história que tinha adormecido debaixo das saias da rainha.
Franz Cleyn
Three Eldest Children of King Charles I in 1635: King Charles II (1630-1683) when Prince of Wales, King James II and VII (1633-1701) when Duke of York, Mary, Princess of Orange (1631-1660)
Ticiano
Eleonora Gonzaga
1538
Galleria degli Uffizi, Florença
Velazquez
Infante Felipe Próspero
1660
Kunsthistorisches Museum, Viena
Por fim, para acabar uma lista de muitos, deixo-vos com o Papillon. O Papillon é engraçado pois o seu focinho, visto de frente tem a forma de um laçarote. Era o cão de colo favorito da nobreza espanhola e francesa. Podemos no cantinho da cama da Vénus de Urbino de Ticiano, ou, neste caso, no colo de uma duquesa europeia. Há outra história relacionada com os cães e a morte dos seus proprietários famosos. Enquanto pug adormeceu debaixo das saias de Maria da Escócia, o Papillon de Maria Antonieta foi levado ao colo por ela, enquanto ela se dirigia para a guilhotina.
Henrietta Anne - Duquesa de Orleans
XV
Musee Carnavalet, Paris
[link]
5 Comments:
não concordo completamente. à queima-roupa lembro-me do retrato de D. Sebastião, de Cristóvão de Morais, e um retrato de Guilherme de Orange, julgo que de Ticiano (mas não juro). ambos têm belos cães. aliás, os mastins eram símbolo de poder e nobreza, embora em nenhum desses dois quadros sejam mastins os retratados.
quero um post sobre os bebés-lesma.
nos retratos individuais o cão conta outra "cena"
o cão humaniza a personagem
está lá para desviar as atenções e fazer durar (e demorar) a nossa atenção sobre o retratado (que são sempre - o retrato - umas pinturas um bocado chatas...)
é como aquelas velhinhas que insistem em mostrar-nos as fotos dos netinhos...
é por isso que eu digo (e se isto é raro...) viva o cão! entra depressa (o'neil pre-vertido) para dentro desta pintura!
eu sei que não tem nada a ver (quem sabe para outras postas...) mas também gosto muito, nas naturezas mortas, das facas na ponta da mesa...
Caro João Barbosa:
Mas estamos cá para isso, para não concordarmos e para concordarmos. Não percebi foi com o que não concorda. Se os cães não eram de caça, nem eram de uma raça pequena, aí temos uma contradição da minha parte (se bem que dois exemplos não façam a excepção.) Se os retratados têm ou ca~es de caça, ou cães de companhia, então estamos em sintonia.
Cara Ana:
Acho que isso podes pedir a uma certa amiga nossa que estava indecisa entre xavier e Jaime que poste sobre isso. É matéria que não domino e que a minha anatomia nunca me vai permitir dominar.
Caro AM:
depreendo pelas suas palavras (God, que discurso!) que não gosta de cães. No retrato real a coisa é mais pomposa, um bocadinho maçadora. No retrato com o pintor, o exemplo que dou, a presença do cão no quadro é muito mais humana. Fica prometido um postezinho sobre as facas
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