quinta-feira, janeiro 01, 2009

- ars longa, vita brevis -
hipócrates

Antes e depois ou como podia dizer que já não gosto mais do Caravaggio por ele ser um “depois”, mas gosto na mesma e cada vez mais. O que é que se pode fazer. É que acho que ele pegou numa parte do fresco de Miguel Ângelo relativo ao martírio de São Pedro que foi crucificado de pernas para cima, e deu-lhe mais dramatismo bem como ironia, o que era próprio de Caravaggio.

O fresco de Miguel Ângelo cujo pormenor aqui apresentamos faz parte de um conjunto relativo ao martírio do santo, como foi dito, e está presente na Capela Paulina no Vaticano. (Capela Paulina foi encomendada pelo Papa Paulo III, enquanto a Sixtina, anterior, tinha sido encomendada pelo Papa Júlio II). Segundo a tradição divulgada pelos escritos apócrifos e históricos, o apóstolo Pedro foi crucificado de pernas para o ar, numa cruz invertida relativamente à de Cristo, cruz esta que ficou colocada ou na colina de Janículo ou na arena de um circo que se situava entre duas metae; ou seja, o par de postes cónicos ou colunas cónicas que podiam ser encontradas à saída de cada caminho. A referência Bíblica à crucificação de Pedro encontra-se em João 21; 18-19: “Na verdade, na verdade te digo que, quando eras mais moço, te cingias a ti mesmo, e andavas por onde querias; mas, quando já fores velho, estenderás as tuas mãos, e outro te cingirá, e te levará para onde tu não queiras./ E disse isto, significando com que morte havia ele de glorificar a Deus. E, dito isto, disse-lhe: Segue-me.” (nesta ocasião Jesus falava com os três apóstolos, aqui com Pedro, que estavam a pescar). Já antes e segundo a Bíblia e o mesmo evangelho, Pedro teria perguntado a Cristo em oração: “Domine, quo vadis? (“Senhor, onde vais?”) (João 16, 5). Este teria respondido: “A Roma para ser crucificado de novo”. Esta resposta tem uma relação muito especial com a crucificação de São Pedro, uma vez que ao ouvir isto e depois de ter fugido de Roma esteve encarcerado, o santo decide voltar pois sabia que tinha de enfrentar o seu destino. Os textos não canónicos é que referem que Pedro, condenado à morte pelo Imperador Nero, solicita ser crucificado de pernas para o ar, com a cruz invertida, por não se considerar um indivíduo digno de sofrer a mesma morte que Cristo.

Na representação artística do tema os responsáveis têm utilizado ambos os cenários, mas sempre no momento em que a cruz de Pedro está a ser levantada pelos soldados, talvez para dar a perceber a quem vê como o santo foi crucificado e geralmente com um pequeno grupo de mulheres à volta numa alusão à presença de mulheres na representação da crucificação de Cristo, embora apenas um Evangelho refira a presença de Maria. Não sei, mas duvido que as mulheres pudessem andar assim por lá. No fresco de Miguel Ângelo toda a composição está voltada para a cena central: a cena da crucificação, do triunfo do sofrimento e da dor. O carácter de São Pedro, mesmo neste momento não é colocado em causa: ele é inflexível, não cede e não mostra a sua dor. Há um alongamento propositado da cruz através das personagens que a seguram, e que faz com que a cruz pareça ter um corpo vertical muito alto em comparação com o horizontal onde ficaram os braços, mas que também ajuda na composição, uma vez que a dinamiza pois cria um “X” no centro do fresco e prolonga-o. Para além de dinamismo, as linhas diagonais dão a sensação de força e de esforço em tempo directo. As personagens à volta, as que estão mais afastadas do centro, permanecem na vertical, enquanto as que estão próximas do santo, as que lhe seguram o lenho e tentam elevá-lo, sofrem uma pequena rotação para acompanhar a sua posição. Todas as pessoas à volta de São Pedro parecem tremer de terror. Só queria deixar mais uma nota que julgo ser muito importante: no chão, de frente para nós, mas agachado, um homem abre um buraco com as mãos para nele enterrar parte da cruz e desta forma assegurar a sua elevação.

Porém, em Caravaggio, esse homem, assim como todo o quadro sofrem um efeito de photoshop, talvez um “transform, mirror”, porque a composição, se a virmos como num espelho é igual. Não estou a dizer que as imagens são iguais, nem que a paleta de cores é semelhante… Não é nada disso. Estou a dizer que das muitas representações possíveis, Caravaggio escolheu a mesma de Miguel Ângelo mas de um ponto diferente. A crucificação de São Pedro que se encontra na igreja de Santa Maria del Popolo, é uma das duas pinturas do autor, presentes na Capela Cerasi. Enquanto em Miguel Ângelo tudo é cor e claridade, em Caravaggio é penumbra embora o efeito seja o mesmo. Vejam que as linhas de força do quadro são também diagonais. Claro que estas serviam melhor os propósitos do Barroco do que os do Renascimento, mas ambos os artistas parecem saber que as diagonais são uma mais valia quando se pretende que um quadro tenha força expressiva. Em Miguel Ângelo, todos os rostos eram visíveis, embora na minha opinião o rosto de São Pedro pintado assim, fica distorcido e até parece ser, de todos, o rosto menos evidente. Já em Caravaggio é ao contrário: todos os rostos estão na penumbra à excepção de São Pedro que, por ter sido escolhido aquele ponto, se mostra de frente para nós. Ambos retrataram São Pedro em agonia, mas o São Pedro de Caravaggio é um homem que ainda tem forças para pedir aos seus carraços “prendam-me com mais força! Isso, vejam se eu me ralo!”. O São Pedro de Miguel Ângelo já parece mais preocupado a olhar de esguelha, uma vez que naquela posição não tem um ponto de vista muito bom, ao contrário da pintura de Caravaggio. Outro pormenor que não me parece inocente, é a posição do carrasco que abre o buraco para assentar a cruz. Na obra de Miguel Ângelo, segue as outras personagens e está de frente para nós, mas na obra de Caravaggio, muito mais concentrada e com um efeito de luz que acentua o dramatismo, o mesmo carrasco está em primeiro plano e com o seu grande rabiosque voltado para nóse com os pés muito amarelos. Caravaggio quer com isto dizer que ao contrário de Miguel Ângelo, ele não vê o martírio do santo como um acto heróico, mas como uma humilhação.
Miguel Ângelo
Martyrdom of St Peter (pormenor)
1546-50
Cappella Paolina, Palazzi Pontifici, Vaticano


Caravaggio
The Crucifixion of Saint Peter
1600
Cerasi Chapel, Santa Maria del Popolo, Roma

2 Comments:

Blogger AM said...

se eu fosse ao Miguel Ângelo dedicava-me era mas era à arquitectura...

1/1/09 11:29 da tarde  
Blogger Belogue said...

Caro AM:
não percebi se isso era um elogio a si ou ao miguel ângelo. em qualquer dos casos, assino com uma cláusula em letras miudinhas que não se tome a parte pelo todo. Uma não desfaz o artista.

8/1/09 11:53 da tarde  

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