segunda-feira, outubro 20, 2008

- o carteiro -

um antes e depois:
Há algum tempo que ando a tentar perceber onde existe - porque sei que existe - uma diferença entre a arte católica e a arte protestante, principalmente após o Concílio de Trento. Já aqui tinha falado de um exemplo: “O Anjo ditando o Evangelho a São Mateus” de Caravaggio e o “Anjo ditando o Evangelho a São Mateus” de Rembrandt. Nota-se que no quadro de Rembrandt é o santo quem decide, é o santo que pensa e que escreve enquanto no caso do pintor italiano e numa versão perdida (que é a melhor das duas de Caravaggio) o anjo pega na mão do santo e escreve por ele. São Mateus é retratado como um homem velho, com uma tarefa para executar de exigência superior às suas capacidades e mostra-se desorientado e até sujo. Uma das diferenças entre a arte católica e a arte protestante está exactamente aqui: o Protestantismo que acreditava que cada um de nós era responsável pela sua existência terrestre e que quando colocados no mundo, sem pecado, não era Cristo que respondia pelos nosso pecados futuros através da sua morte, mas sim que a ausência de pecado deveria ser um incentivo para que cada fiel lutasse por uma vida impoluta.

Caravaggio
St. Mathew and Angel


Rembrandt
St. Mathew and Angel
1661
Louvre, Paris, França
Mas sabia que havia mais exemplos pois a 25ª sessão do Concílio de Trento foi dedicado à arte, mas principalmente à representação de santos e de Cristo. Apesar de acusada de abusar do culto de imagens, a Igreja Católica enfatizou, dentro de certos limites, o fervor religioso icónico. As directivas pós Concílio de Trento não permitiam imagens que fizessem apelo aos sentidos, ou despertassem cobiça ou luxúria. No entanto, olhando para duas obras, sobre a mesma temática, realizadas por artistas diferentes ou pelo mesmo artista, mas antes e depois do Concílio de Trento, não parece haver diferenças. Descobri no entanto este Cranach que ilustra o espírito que se vivia na época, anterior ao Concílio e que opunha protestantes e católicos. É o típico quadro da Reforma que serve neste caso os interesses do Protestantismo. Chama-se "As vinhas do Senhor" e não é fácil de encontrar. O autor dividiu o quadro em duas partes: do lado esquerdo está um grupo que representa a Igreja Católica do século XVI e do lado direito, um grupo que representa a recém-formada Igreja Protestante. O grupo católico de vestes impecáveis puxa as vinhas pela raiz, arranca-as, queima-as e preenche o espaço deixado pelas vinhas com pedras. O grupo da direita, o grupo de protestantes de onde se destaca Lutero, rega as plantas. Não é uma pintura dentro do espírito Ecuménico, mas na altura, o que é que isso importava? Esta pintura mostra que a arte protestante estava ligada mais ao povo, à pessoa comum e às classes trabalhadoras do que a arte cristã. Por outro lado, assume uma opinião arrojada acerca da Igreja Católica ao dar a entender que as suas acções para angariar fiéis e para os manter são mais audaciosas. A arte da Igreja Católica não fala por meias palavras: uma Madonna é uma Madonna, mesmo quando está a ser representada por uma santa. O ambiente geral é sempre igual não havendo por isso dúvidas se estamos perante arte católica ou protestante. No caso do Protestantismo, na arte qualquer mulher pode representar a Virgem.

Cranach
The Lord Vines
Stadtkirche

Vejamos “The Milkmaid” de Vermeer. Com a janela aberta e a luz a incidir nela, poderia ser uma imagem do amor maternal que cuida de nós, que nos alimenta. É uma mulher simples que não mostra vaidade nem tem nenhum traço especial, mas que está a desempenhar as suas funções e é através da graça de Deus (Deus que concede trabalho ao homem), segundo o Protestantismo, que encontramos Cristo. Na arte católica a pessoa não se retrata, ninguém se revê no que ali está porque os ideias de beleza e as atitudes são inalcançáveis e não são humanas. Como toca o extraordinário a arte católica era essencialmente uma arte dos sentidos em que tudo tinha que ser grande e abrangente, tudo tinha de ser em larga escala. Já o Protestantismo promoveu a proliferação das gravuras o que permitiu que cada pessoa tivesse o seu manual e que a religião fosse algo mais privado.

Johannes Vermeer
The Milkmaid
c. 1658
Rijksmuseum, Amsterdão

Quando o Protestantismo começou a ser adoptado pelos diferentes países, a mesma religião, quer pela crítica que fazia à Igreja Católica, quer pela própria natureza das suas regras, diminuiu a produção artística e restringiu-a às pinturas de paisagens, retratos e pinturas de cenas do quotidiano. Não obstante, a Reforma Protestante foi responsável por uma vaga iconoclasta pois as pessoas achavam que as imagens promoviam uma certa idolatria que distraía a atenção e o coração daquilo que era verdadeiramente importante. Em algumas igrejas as imagens foram mesmo removidas e o que aconteceu nos países protestantes foi que a Igreja deixou de patrocinar obras de carácter religioso, ficando a sua execução a cargo e responsabilidade do artista ou de outras instituições. Mas nas igrejas em que isso não aconteceu, vemos que existe uma diferença importante, ao nível da imagem, no altar. A Igreja Católica e a Igreja Protestante divergiam num dogma que era o da transubstanciação; ou seja, católicos acreditavam que o pão e o vinho da Última Ceia se tinha transformado em corpo e sangue de Cristo, não acontecendo o mesmo com o Protestantismo. Por isso, em altares protestantes é comum estar exposta uma Última Ceia para lembrar aos fiéis que são apenas alimentos: no seu contexto esta é uma imagem forte e coerente porque mostra apenas 13 homens sentados a uma mesa a comer pão e a beber vinho. Para protestantes foi a Última Ceia de Cristo e não o momento em que o pão e o vinho se transformam em carne e sangue. No caso dos altares cristãos o que vemos invariavelmente é um crucifixo pois no momento da crucificação já Cristo deu a vida por nós e por isso já o acto está consumado.
Há exemplos que devemos dar. Brueghel, por exemplo, foi um pintor que tanto exerceu a sua actividade tendo a vista a encomenda católica como a encomenda protestante. Notamos aliás um gosto pelas paisagens em todo o repertório de Brughel. Mas mesmo quando não pinta uma paisagem, Brueghel pinta com um grande desprendimento pelas convenções do Catolicismo. Veja-se o exemplo de "Peasant Wedding" em que está retratada uma festa de casamento dentro de uma taberna (talvez), com as pessoas bastante felizes, a comer e a beber e não há nada naquele quadro que nos indique a presença de uma religião seja ela qual for. Não há qualquer alusão ao casamento católico. Esta pintura mostra, tal como a anterior que o que a Igreja pretendia era dar o exemplo através de pessoas reais. Obviamente a obra não foi comissionada pela Igreja, mas insere-se no espírito do Protestantismo, que tal como o do Catolicismo, se estendia a todas as áreas da vida dos praticantes. O Protestantismo achava que, uma vez que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, quanto mais humano fosse Cristo, maior a identificação do homem com este.

Pieter Brueghel, the Elder
Peasant Wedding
c. 1567
Kunsthistorisches Museum, Vienna

Outro exemplo da arte protestante em resposta à arte católica é esta gravura de Hans Baldung Grien onde vemos como Martinho Lutero o fundador da Igreja Luterana é retratado como um santo. Ora se os protestantes não faziam a apologia das imagens e achavam mesmo que se fazia a idolatria do divino através das mesmas, o retrato de um membro do protestantismo, além do mais, seu fundador, nestes preparos, é a negação da pregação protestante. Já aqui tínhamos falado também do episódio de Veronese que se viu alvo da Inquisição por a sua Última Ceia retratar anões e bêbados e pessoas de má índole. O pintor teve mesmo de mudar o nome do quadro para "Festim em Casa de Levi" que não deixando de ser um episódio bíblico, é um episódio bíblico menos conhecido e não é fulcral para o Cristianismo como a Última Ceia. Pode dizer-se que o Protestantismo dessacraliza a arte para chegar mais facilmente às pessoas, enquanto o catolicismo enfatiza o sacro dentro da arte como forma de atrair as pessoas.

Hans Baldung Grien
Portrait of Martin Luther
1521

Já depois do Concílio de Trento, quando a Igreja se debatia com a tentativa de regulamentar a arte pós tridentina e conjugá-la com os ideias católicos a “Lamentação” de Scipione Pulzone é uma obra importante pois mostra essa luta. Cristo tem um corpo e um rosto perfeitamente humanos. Não está num sofrimento sobre-humano nem tem no rosto a expressão de alívio. É apenas um homem morto e esta é apenas uma lamentação sem exageros, sem corpos retirados da cruz quase com roldanas, sem corpos nus.

Scipione Pulzone
Lamentation
1591
Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque