terça-feira, julho 08, 2008

- o carteiro -
Na nova iconografia, na representação pictórica de santos recentes (recentes digamos, santos que não foram contemplados com uma entrada na Legenda áurea de Voraigne), substituiu-se o martírio pelo ascetismo. Temos de ter em linha de conta o facto de a antiga iconografia se basear primeiro, numa hagiografia oral de Guinefort e depois, na hagiografia de Voraigne. Quando foram necessários novos santos para a renovação da Igreja – uma vez que os textos religiosos não podiam ser renovados se não na sua interpretação, mas sempre dentro de certos limites e adaptados às idiossincrasias do tempo – esses não tinham história escrita. Não era pelo menos história legitimada pela patine do tempo, da consagração temporal e humana. Na sua maior parte, os santos de hoje são homens e mulheres que não sofreram martírios, pela simples razão de que a elevação e reconhecimento da sua religião como religião oficial (na maior parte dos reinos e posteriormente, países da Europa) retirou à mesma o estatuto de perseguida e por isso os martírios e mortes violentas cessaram. Os santos perdem a sua aura no momento em que as suas crenças se tornam obrigação moral de todos os mortais. Foi um dos efeitos perversos da hegemonia que Igreja Católica produziu na própria Igreja. Para o retrato iconográfico actual a inexistência de elementos de identificação torna mais difícil a captação da entidade retratada e a identificação dos crentes com a mesma, uma vez que o ascetismo dificilmente tem tradução gráfica diversificada.
Por outro lado, a antiga iconografia e a repetição de temas cedo cai e caiu na rotina, no campo legendário e por isso, incapaz de emergir com verdade das estórias criadas à sua volta. O uso excessivo de um tema levou a que muitos retratos iconográficos saíssem deturpados, o que parece uma contradição. Mas vejamos deste ponto: todos nós conhecemos a história d’”Os Três Porquinhos”; todos a contamos com o mesmo sentido, mas as nossas histórias diferem na forma.

Antoni Gaudí
The Coronation of the Virgin
Século XX

Portal da Natividade do Temple Expiatori de la Sagrada Família, Barcelona

Os santos inseriam-se em duas categorias: aqueles que em vida foram homens pobres, pecadores ou prostitutas, que se converteram e foram perseguidos, que morreram às mãos do seu executor, e os homens de origem nobre, com estudos, que se convertem e afrontam um tirano que invariavelmente não partilha dos mesmos gostos religiosos, é capturado, sofre suplícios, morre, o seu corpo é milagrosamente (parcial ou totalmente) conservado. E em que lugar se encaixa Maria, que para além de não pertencer a nenhuma das categorias, é mulher? Durante o século VI e devido a uma incorrecta interpretação de um escrito de Gregory de Tours (“Glória dos Mártires”) e a um sermão mal atribuído, julgou-se que após a entrada no céu de Maria como “A rainha dos céus ornada do ouro mais fino” (a chamada Assunção), Maria teria sido coroada pois a Bíblia refere nos salmos essa passagem, bem como uma outra em que Cristo lhe teria pousado sobre a cabeça uma coroa de pedras preciosas. Mas não há provas bíblicas disso e a Legenda Áurea é omissa nesse caso pois fala apenas da aceitação da Virgem no céu. Se fosse realmente um facto bíblico a forma como o tema da coroação da Virgem não teria tido tantas interpretações.

Geertgen tot Sint Jans
Virgin and Child
1480s
Museum Boijmans Van Beuningen, Roterdão

A Virgem surge coroada com as mãos juntas, com as mãos separadas, coroada por um anjo na presença do seu filho, coroada pelo próprio, de pé (o que contradiz a tese da partilha do trono que Cristo lhe faz segundo os Evangelhos e escritos apócrifos e que é tida pelos teólogos, não como uma proposta de partilha mesmo, mas apenas um convite a que a sua mãe se sente com ele num banco para duas pessoas, muito comum naquela época), de joelhos e até, coroada pelo seu filho enquanto Menino, o que é realmente admirável, pois se a coroação fosse um facto bíblico a mesma só teria acontecido após a morte da mãe de Cristo e uma vez que ela morre depois dele, e ele morre com 33 anos… (Portanto, é fazer as contas!). A oferta da coroa pode ter sido o retomar de um gesto profano de troca de coroas de flores que os jovens noivos faziam e como Maria é vista, até à Contra Reforma como uma mãe muito carinhosa, não seria de estranhar esta relação entre mãe e filho. O povo criou, e a Igreja deixou que assim fosse e que se acreditasse que a coroação da Virgem faz parte dos episódios de vida da mesma, um dos pilares de crença. Porque Maria é uma personagem importante no Cristianismo, mas ao mesmo tempo controversa por ser a segunda Eva, mas sem o pecado original. E foi por isso, por causa desse pecado original que a importância da Virgem foi tão questionada por protestantes. Esta intervenção “paroquial”, local do povo, a adopção de um tema que lhe era caro fez com que a própria personagem Bíblica não recebesse muitas vezes o tratamento que lhe era devido.

Giovanni di Paolo
The Coronation of the Virgin
c. 1455

Metropolitan Museum of Art

E foi isso que se passou com o culto mariano, pois a difusão das crenças antigas reacendeu as que já estavam enterradas ou que pelo menos não eram tão importantes. Se a iconografia se limitasse às cenas bíblicas, o número de temas e situações em que a Virgem surge diminuiria de forma vergonhosa.

Ambrogio di Baldese
Coronation of the Virgin
século XV

Musei Capitolini, Roma

2 Comments:

Blogger João Barbosa said...

estou esmigalhado

8/7/08 2:18 da tarde  
Blogger Belogue said...

não se esmigalhe homem que depois vou ter de apanhá-lo e posso transformá-lo num brioche

8/7/08 11:58 da tarde  

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