- o carteiro -
"Pai, afasta de mim esse cálice, Pai". E essa faca!
Se virmos bem estas duas imagens, não podiam ser mais contraditórias. Referem-se ao mesmo período temporal, embora uma retrate a realidade rural e a outra fale de um tema obrigatório no currículo de qualquer pintor, ao nível de uma pietá: a Última Ceia. O que as distingue não é apenas o tema, mas a meu ver (e o meu ver é aquele que neste momento interessa aqui, porque o Belogue é meu), é também o que está pintado. É que em ambos os casos podemos ver homens que comem: no caso do comedor de feijões, é apenas um homem que come de uma taça de feijões com uma colher. Na mesa encontra-se uma faca, mas de uso doméstico. No segundo caso, um grupo de homens supostamente santos, partilha com Cristo a última refeição e ao alcance de várias mãos estão pelo menos três facas. Judas é uma dessas pessoas, o que se traduz numa forma de iconografia curiosa: Judas empunhando uma faca para representar o homem que horas mais tarde iria trair Cristo.
O porquê da faca e a minha insistência neste objecto não é casual. É que estive a ler acerca disso, do aparecimento das facas no seio da cozinha, a que tempos remonta o uso dos talheres e descobri factos bem curiosos, uns que são corroborados de certa forma nas pinturas e outros que… nem por isso. Vamos então ao comedor de feijões. Os bens materiais nesta época, bens como chávenas e pires e todo o tipo de vasilhame sofre um incremento durante a Idade Moderna. No início, só para que se tenha uma ideia, não existia sequer na maior parte dos reinos europeus uma cadeira por casa. Os inventários post-mortem vieram mostrar como a situação foi mudando. Era igualmente comum que uma família numerosa (porque as famílias eram quase todas numerosas), mesmo com algumas posses não fruísse de mais do que uma malga onde a comida era colocada e de onde todos comiam, como de resto ainda hoje acontece em algumas famílias durante as celebrações natalícias. Não é por isso de estranhar que o comedor tenha uma grande malga onde tanto come um caldo como a carne ou por onde bebe vinho. Não obstante a presença de um copo de vinho, nem sempre assim foi e só com o Renascimento, com a descoberta de novas formas de trabalhar o vidro, foi possível às famílias possuírem coisas tão necessárias e comuns como copos ou mesmo… janelas envidraçadas. O grés, o vidro e a faiança foram substituindo progressivamente o estanho, a madeira e mesmo o cobre. No início do século XVI, por exemplo, os notários listavam cerca de 10 utensílios de metal (entre talheres, panelas, púcaros e malgas) por família, enquanto no final do século XVIII aparecem cerca de seis objectos por família. Os novos materiais substituem então os antigos. Foi também a partir deste momento que surgiu o mercado paralelo das imitações, uma vez que determinados objectos como chávenas podiam conferir algum status a quem os possuísse e por isso eram muito desejados. Quem a eles não tinha acesso, aventurava-se no mercado das cópias. As chávenas, que inicialmente ninguém possui são, em 1725 presença em casa de cerca de 15% das famílias. A casa do comedor de feijões é ainda uma casa onde isso não acontece. Poderia a chávena chegar no fim da refeição? Obviamente sim, mas uma vez que tudo se encontra na mesa, a inexistência da chávena na mesma denuncia a sua inexistência na casa. No mesmo período, as casas que possuem facas e garfos passa de 1% para 10%. Um bom aumento, mas não o suficiente ainda para que nesta casa se encontre um garfo. Convém lembrar que a introdução do uso de garfos foi um capricho real uma vez que chegou no início da Idade Média e foi apresentado na corte por um membro da família real que vinha de fora para casar com o pretendente ao trono. O instrumento foi olhado com estranheza e sempre preterido relativamente à colher. A faca doméstica por seu turno, como deriva do punhal, da espada, do espadachim, enfim, de instrumentos bélicos, foi mais facilmente aceite no ritual da refição do que o garfo. Os italianos privilegiam o seu uso e chegam mesmo a ter uma faca para cada conviva. É portanto natural que a faca esteja presente na mesa do nosso comedor de feijões, embora não seja provável que ele vá fazer uso dela. Falo aqui dos italianos porque o quadro é de um italiano. Mas os alemães, por exemplo tinham tamanho gosto pela sua faca doméstica que ficavam agastados sempre que algum conviva a utilizava. À medida que a sociedade se tornava menos belicosa o uso da faca a mesa também foi diminuindo, isto porque apesar de ser um sinal de evolução social a faca poderia suscitar medo ou recordar guerras passadas. Na China, por exemplo, em tempos de paz a faca foi banida da mesa!
Há aqui também o factor religioso que não pode ser esquecido. Durante o cisma entre a Igreja Ortodoxa e a Igreja de Roma os garfos são vistos pelo clero como símbolo do demónio (a forquilha e a morte estiveram sempre associadas também ao demónio embora não representem todas a mesma coisa. Note-se que a forquilha até se assemelha visualmente ao ceptro de Neptuno na mitologia da Antiguidade) e o seu uso visto de forma tão negativa que é mesmo considerado pecado. E o estigma prevaleceu ao longo de vários séculos (talvez por isso o comedor de feijões não faça uso de garfo). Até ao século XVII, pelo menos, sabemos que Monteverdi ao fazer uso da etiqueta é obrigado a servir-se deste utensílio. Pois sempre que o faz manda rezar três missas para expiar o pecado cometido! Quanto ao comedor… é natural que se alimente de feijões. Determinados alimentos estavam reservados para determinadas pessoas e certos estômagos não aguentavam mudanças bruscas. Era possível que um nobre, habituado a outro tipo de alimentos, explodisse de flatulência perante dieta tão rica como era a dos feijões.
O porquê da faca e a minha insistência neste objecto não é casual. É que estive a ler acerca disso, do aparecimento das facas no seio da cozinha, a que tempos remonta o uso dos talheres e descobri factos bem curiosos, uns que são corroborados de certa forma nas pinturas e outros que… nem por isso. Vamos então ao comedor de feijões. Os bens materiais nesta época, bens como chávenas e pires e todo o tipo de vasilhame sofre um incremento durante a Idade Moderna. No início, só para que se tenha uma ideia, não existia sequer na maior parte dos reinos europeus uma cadeira por casa. Os inventários post-mortem vieram mostrar como a situação foi mudando. Era igualmente comum que uma família numerosa (porque as famílias eram quase todas numerosas), mesmo com algumas posses não fruísse de mais do que uma malga onde a comida era colocada e de onde todos comiam, como de resto ainda hoje acontece em algumas famílias durante as celebrações natalícias. Não é por isso de estranhar que o comedor tenha uma grande malga onde tanto come um caldo como a carne ou por onde bebe vinho. Não obstante a presença de um copo de vinho, nem sempre assim foi e só com o Renascimento, com a descoberta de novas formas de trabalhar o vidro, foi possível às famílias possuírem coisas tão necessárias e comuns como copos ou mesmo… janelas envidraçadas. O grés, o vidro e a faiança foram substituindo progressivamente o estanho, a madeira e mesmo o cobre. No início do século XVI, por exemplo, os notários listavam cerca de 10 utensílios de metal (entre talheres, panelas, púcaros e malgas) por família, enquanto no final do século XVIII aparecem cerca de seis objectos por família. Os novos materiais substituem então os antigos. Foi também a partir deste momento que surgiu o mercado paralelo das imitações, uma vez que determinados objectos como chávenas podiam conferir algum status a quem os possuísse e por isso eram muito desejados. Quem a eles não tinha acesso, aventurava-se no mercado das cópias. As chávenas, que inicialmente ninguém possui são, em 1725 presença em casa de cerca de 15% das famílias. A casa do comedor de feijões é ainda uma casa onde isso não acontece. Poderia a chávena chegar no fim da refeição? Obviamente sim, mas uma vez que tudo se encontra na mesa, a inexistência da chávena na mesma denuncia a sua inexistência na casa. No mesmo período, as casas que possuem facas e garfos passa de 1% para 10%. Um bom aumento, mas não o suficiente ainda para que nesta casa se encontre um garfo. Convém lembrar que a introdução do uso de garfos foi um capricho real uma vez que chegou no início da Idade Média e foi apresentado na corte por um membro da família real que vinha de fora para casar com o pretendente ao trono. O instrumento foi olhado com estranheza e sempre preterido relativamente à colher. A faca doméstica por seu turno, como deriva do punhal, da espada, do espadachim, enfim, de instrumentos bélicos, foi mais facilmente aceite no ritual da refição do que o garfo. Os italianos privilegiam o seu uso e chegam mesmo a ter uma faca para cada conviva. É portanto natural que a faca esteja presente na mesa do nosso comedor de feijões, embora não seja provável que ele vá fazer uso dela. Falo aqui dos italianos porque o quadro é de um italiano. Mas os alemães, por exemplo tinham tamanho gosto pela sua faca doméstica que ficavam agastados sempre que algum conviva a utilizava. À medida que a sociedade se tornava menos belicosa o uso da faca a mesa também foi diminuindo, isto porque apesar de ser um sinal de evolução social a faca poderia suscitar medo ou recordar guerras passadas. Na China, por exemplo, em tempos de paz a faca foi banida da mesa!
Há aqui também o factor religioso que não pode ser esquecido. Durante o cisma entre a Igreja Ortodoxa e a Igreja de Roma os garfos são vistos pelo clero como símbolo do demónio (a forquilha e a morte estiveram sempre associadas também ao demónio embora não representem todas a mesma coisa. Note-se que a forquilha até se assemelha visualmente ao ceptro de Neptuno na mitologia da Antiguidade) e o seu uso visto de forma tão negativa que é mesmo considerado pecado. E o estigma prevaleceu ao longo de vários séculos (talvez por isso o comedor de feijões não faça uso de garfo). Até ao século XVII, pelo menos, sabemos que Monteverdi ao fazer uso da etiqueta é obrigado a servir-se deste utensílio. Pois sempre que o faz manda rezar três missas para expiar o pecado cometido! Quanto ao comedor… é natural que se alimente de feijões. Determinados alimentos estavam reservados para determinadas pessoas e certos estômagos não aguentavam mudanças bruscas. Era possível que um nobre, habituado a outro tipo de alimentos, explodisse de flatulência perante dieta tão rica como era a dos feijões.
Annibale Carracci
The Beaneater
The Beaneater
1580-90
Galleria Colonna, Roma
Ininteligível mesmo é o segundo quadro: apesar de sabermos já que os italianos faziam grande uso da faca, que o garfo é que era mal visto, estamos perante um quadro datado do mesmo período do anterior, mas onde as facas têm um papel essencial. A estranheza chega do facto de esta ser uma cena de redenção, de reconciliação e preparação para um período adverso como foi o da morte de Cristo e os apóstolos terem ao seu alcance uma faca, como se a refeição, isto segundo a Bíblia tivesse sido composta das carnes mais duras de um porco velho. De uma galinha, vá lá. E já nem digo de um peixe, que como se sabe, pode ser comido sem faca. Se as facas nos punhos pretendiam criar tensão, então Jacopo conseguiu alcançar o sucesso.
Jacopo Bassano
The Last Supper
c. 1546
Galleria Borghese, Roma
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