- ars longa, vita brevis -
hipócrates
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A RTP passou ontem à noite o filme “Tróia”. Não o vi, nunca o vi, mas fiquei a pensar num episódio da vida de Aquiles que nunca é referido – até porque não vem escrito na Ilíada, mas nas Metamorfoses de Ovídio – e que faria corar o mais aguerrido apoiante do grande guerreiro. Conta-se que quando a mãe de Aquiles o enviou para a guerra de Tróia, que no filme sei que não é contado desta forma, mas como se Tétis o avisasse da necessidade de cumprir esse desígnio dos deuses, ficou com medo que este morresse ou que fosse ferido no seu ponto fraco. (quando ele nasceu, filho de um mortal e de uma deusa, amado pelos deuses, teve direito a uma protecção extra: Aquiles era imortal pois a sua mãe tinha-o retido numa fogueira e era invulnerável pois mergulhou-o no rio Estige, no Hades, segurando-o pelo calcanhar. Como o calcanhar foi a única parte do corpo que não foi mergulhada, esse tornou-se o seu ponto fraco, o seu “calcanhar de Aquiles”). Assim, para o proteger e evitar que fosse combater para a Guerra de Tróia, Tétis enviou-o para Ciro a fim de ir viver, disfarçado de mulher, com as filhas de Licomedes de Ciro. Estava a correr tudo muito bem, até que um dia ao ver, juntamente com as raparigas, um carregamento de tecidos e jóias que tinha chegado pela mão de um vendedor novo (que era na realidade Ulisses disfarçado, uma vez que este procurava que Aquiles combatesse a seu lado na guerra contra Tróia. Entre as jóias e os tecidos estava um elmo, uma espada e um escudo), Aquiles descai-se e em vez de mostrar interesse pelas jóias, pelos tecidos e pelos bordados, coloca logo a mão na espada. Aquiles denunciou-se e acabou por ir combater para Tróia.
Este não é um tema muito retratado na arte, mas lá foi possível encontrar três pintores que captaram esta mudança temporária de género que é preterida em detrimento de cenas mais viris como Aquiles a lutar, a receber o escudo e a armadura das mãos da sua mãe, ou mesmo conduzindo a quadriga enquanto arrasta o corpo de Heitor morto. Em todos os exemplos, excepto em Poussin que é o mais clássico dos pintores clássicos, Aquiles aparece vestido de mulher no quadro de Jan de Bray, Ulisses encontra-se junto do arco, mais à esquerda da composição, a carregar uma cesta com vários objectos (um deles é o elmo de Aquiles) e olha para Aquiles, no centro da pintura, vestido de branco e com uma peruca. Outros intervenientes também olham para ele neste momento fotográfico: no exacto instante em que o herói agarra a espada, todas as tenções, incluindo a das filhas de Licomedes, se viram para ele. Aquiles não desfaz de imediato o ar de inocência que havia colocado no rosto e para além disso uma mulher, a da esquerda oferece-lhe um colar de pérolas na tentativa de encobrir o seu erro, que no entanto não desfaz o ar um pouco inocente que tem.
Jan de Bray
The Discovery of Achilles among the Daughters of Lycomedes
1664
Muzeum Narodowe, Varsóvia
No segundo quadro, no quadro de Lairesse Aquiles faz algo ainda mais curioso: parece colocar na cabeça o elmo e na mão direita já empunha a espada. Mas todo o seu aspecto é muito feminino. O mesmo autor tem um outro quadro com o mesmo nome, mas Aquiles surge quase de costas, com vestimentas que não se pode dizer serem de uma mulher (em comparação com as outras ali presentes) e antes de ter por completo a espada na sua posse, já tem o elmo colocado na cabeça.
Gérard de Lairesse
Gérard de Lairesse
Achilles Discovered among the Daughters of Lycomedes
c. 1685
Mauritshuis, The Hague
Poussin foi aquele que mais fugiu ao tema do transformismo, apesar de nunca ter fugido a temas como a nudez, o amor sensual, a violação… Nicolas Poussin pintou Aquiles como o menos feminino e gracioso dos Aquiles entre as filhas de Licomedes. Atira-se com ganância à espada e desembainha-a, de tal forma que uma das raparigas parece temer pela própria vida. Para além disso não é descoberto de imediato: Ulisses está entretido a mostrar a mercadoria às raparigas e não dá pela auto-denúncia de imediato. Poussin é tão clássico, tão clássico que ao contrário dos outros pintores nem sequer desenvolve na mesma cena o momento em que Ulisses agarra Aquiles.
Nicolas Poussin
Achilles and Daughters of Lycomede
1656
The Museum of Fine Arts, Boston
3 Comments:
que maravilha, beluga
ulisses in drag...
que lição
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