quarta-feira, janeiro 23, 2008

- ars longa,vita brevis -
hipócrates

Embora não muito apreciadas pelo meio académico, as vanitas são extremamente ricas e dignas de um post dos grandes. Note-se que Vanitas não são Naturezas Mortas; ou seja, são antes um sub-género das Naturezas Mortas. Há uma hierarquia dentro das naturezas mortas que coloca em primeiro lugar, por ordem de importância as cenas de cozinha, as cenas de caça, as representações dos 5 sentidos, as vanitas, as representações de sobremesas e doces, as mesas postas, as cestas de frutos, as flores, as composições com flores e frutos, a representação de instrumentos musicais, as representações de instrumentos bélicos e os livros. Como podemos ver, as vanitas são só uma temática entre várias dentro do vasto campo que são as naturezas mortas e muitas vezes estes campos que parecem tão bem definidos, fundem-se.

Willem Kalf
Still-Life with a Nautilus Cup
1662
Museo Thyssen-Bornemisza, Madrid

Mas antes de explicarmos em que consistem as vanitas, vale a pena recordar o Livro dos Salmos que contém o verso de Salomão “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade”. Esta ideia de efemeridade da vida que tão bem convinha os propósitos católicos teve um período áureo na Idade Média que enfatizou a perenidade da vida humana como um passo para a santificação pós morte, a passagem para uma vida melhor a que só os eleitos teriam acesso. Proliferam as imagens perturbantes do corpo humano inanimado, ou em decomposição ou já em esqueleto que tanto influencia os fiéis. Lembremo-nos que esta era a época das pestes e por isso tornou-se comum esta divulgação macabra deste tipo de imagens. No Renascimento a ideia da morte foi tratada juntamente com a ideia de destruição e por isso a associação entre elementos típicos das vanitas com as cidades em ruínas, com Cronos (deus do tempo) e Saturno (deus… da depressão! As personagens saturninas vs as personagens solares). Ora quando chegamos à Reforma protestante e o Catolicismo se vê na obrigação de repensar o caminho que a religião tomou, temos também por parte do Protestantismo um recuo face à propagação de imagens e por parte do Catolicismo uma enfatização da ideia de propagação de imagens como meio difusor da religião. Já aqui falámos que como a maior parte da população não sabia ler ou escrever, a alfabetização era feita pela Igreja e por ela moldada. Um homem comum aprendia muito sobre religião e sobre o seu ofício: temia a Deus mas não o amava, sabia que devia fazer o Bem, mas o Bem não do dia-a-dia não era o Bem que lhe garantia um lugar no céu. As pessoas pagavam para isso e daí as acusações da Reforma protestante relativamente à Igreja Católica e à forma como esta se tinha desviado dos seus propósitos originais. Então, enquanto a arte protestante sofreu um refreio, a arte católica foi enfatizada mesmo nos aspectos em que era criticada. Isto aconteceu em parte devido à evolução natural da sociedade da época que já não podia ser contrariada: o homem daquele tempo cultivava o prazer da mesa, dos perfumes, dos tecidos, e o comércio tinha-lhe proporcionado o contacto com esse mundo.

Jan Davidsz. de Heem
Still-Life with Fruit and Lobster
1648-49

Staatliche Museen, Berlin

Ora, obviamente a forma de representar um tema como as vanitas ou a vaidade humana teria de ser diferente para católicos e protestantes. Uma vez que a arte protestante se torna nesta época quase iconoclasta, tornou-se necessário arranjar artifícios para transmitir as mensagens com a mesma força com que seriam transmitidas caso os elementos estivessem todos lá. Os artistas tiveram de encontrar outros temas para as suas obras sem perderem o interesse dos seus compradores, a maior parte deles burgueses que enriqueceram com o comércio. Há neles algo de homem barroco, mas a sua religião pede-lhes que sejam mais comedidos. Nos países católicos faz-se realçar a morte com a perenidade da vida do Homem, enquanto nos países protestantes se arranjar símbolos para a existência terrena, símbolos para a mortalidade e símbolos para a ressurreição para a vida eterna. Por exemplo: sardinhas abertas representavam os órgãos sexuais femininos, a disposição dos legumes podiam indicar a relação entre o vendedor e o comprador, frutos abertos com as sementes à mostra, frutos como pêssegos, melões e figos simbolizavam a ressurreição, o limão representa o tratamento médico, a lagosta representa a ressurreição, a flor-de-lis faz alusão à Virgem Maria, as avelãs representam a cruz e as cerejas o Paraíso.

Pietro Paolo Bonzi
Fruit, Vegetables and a Butterfly
1620
Colecção Privada

5 Comments:

Blogger João Barbosa said...

humm... e o que me diz do vanitas da Paula Rego?

23/1/08 10:08 da manhã  
Blogger AM said...

não volto a comer sardinhas... sem pensar nesta posta...

23/1/08 8:02 da tarde  
Blogger Belogue said...

Caro João Barbosa:
não digo nada. é uma vanitas com os elementos tradicionais e com aquele humos negro da Paula Rego. Mas as Vanitas já são por si simbólicas, não necessitam dessa muleta da ironia.

Caro AM:
a capa da Sábado desta semana fala sobre os alimentos certos em cada idade. A sardinha é boa aos trinta. mas se é um peixe gordo, não podemos antes comer salmão? pelo menos não temos de nos lembrar do post, não é?

24/1/08 3:21 da manhã  
Blogger AM said...

aos trinta e muitos continuo a pensar que o melhor (e enquanto posso) é comer de tudo... mas com moderação
e quem me tira a sardinha assada (na época "dela") tira-me quase tudo
o salmão é mais raro, mas no forno, embrulhado em papel de prata e com oregãos (?) marcha que é uma maravilha
por acaso (ou por estupidez...) já dediquei uma posta (ou duas) ao salmão
não tarda estamos a trocar receitas... mas não fique à espera que eu vá arranjar as lulas

24/1/08 2:15 da tarde  
Blogger Belogue said...

eu arranjo as lulas, não seja por isso. até gosto, confesso.

25/1/08 12:31 da manhã  

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