segunda-feira, dezembro 12, 2005

O CARTEIRO

A propósito de "Where the wild roses grow" ou "este post é inútil, porque ninguém o vai ler e disso eu tenho a certeza tão certeza como tenho a certeza que estou aqui"


Uma imagem do vídeo-clip de "Where the wild roses grow"

Existe alguma coisa em comum entre esta Kylie Minogue pré-hot pants e a Ofélia Morta de Millais. No conteúdo é diferente da de Shakespeare. Se lermos a letra da canção que Minogue interpreta com Nick Cave, vemos que esta conta a história de um casal, ele obcecado pela beleza dela. Iniciam uma espécie de relação que ela conta mesmo depois de morta e que é feita de pequenos passos de enamoramento: as flores, os beijos, até ao desferir da pedra na cabeça. A semelhança com Shakespeare é que Cave fala dela como “a mulher certa”, tal como Hamlet via Ofélia. Como manda a tradição, Minogue diz que ele seria o seu “first man”. Presume-se que em Shakespeare a nossa Ofélia dissesse o mesmo do seu amado.


John Millais
Ofélia
1851-1852
Tate Gallery, Londres

A Ofélia morta de Millais, Minogue e a “Morte da Virgem de Caravaggio são de certa forma a mesma mulher. Minogue e Ofélia são as virgens que se enamoram: Minogue é assassinada, Ofélia mata-se por não conseguir viver com a frase de Hamlet que lhe ecoa no coração o “não te amo” e a Virgem de Caravaggio aparece morta. Retratada como uma prostituta, o corpo inchado e sem dignidade de Mãe do Criador.


Caravaggio
Death of the Virgin (detalhe)
1601-603
Museu do Louvre, Paris

Em todas há denominadores comuns: a água, a imagem do corpo morto que é a última que temos, a virgindade e a pureza.

Mas ainda há outra coisa que me surpreende na letra de Nick Cave: o crescendo nas acções: primeiro olha-a e tem a certeza que aquela “is a woman to love”:

From the first day I saw her I knew she was the one,

Depois no segundo dia levou-lhe uma flor que ainda acentuava mais a beleza dela:

On the second day I brought her a flower.

Ao mesmo tempo, Minogue vai dando a sua visão dos acontecimentos: reconhece quando ele lhe trouxe a flor, mas no terceiro momento, ela fala do rio, dos beijos e da pedra, enquanto ele se refere a esse terceiro momento como se a morte nunca tivesse acontecido:

On the last day I took her where the wild roses grow
And she lay on the bank, the wind light as a thief
As I kissed her goodbye, I said, 'All beauty must die
'And lent down and planted a rose between her teeth

Há uma música da Maria Bethânia onde se verifica este crescendo. É descrita a escolha do homem consoante aquilo que ele leva à sua amada:

O primeiro me chegou como quem vem do florista
Trouxe um bicho de pelúcia, trouxe um broche de ametista
Me contou suas viagens e as vantagens que ele tinha
Me mostrou o seu relógio, me chamava de rainha

(...)

O segundo me chegou como quem chega do bar
Trouxe um litro de aguardente tão amarga de tragar
Indagou o meu passado e cheirou minha comida
Vasculhou minha gaveta me chamava de perdida

(...)

O terceiro me chegou como quem chega do nada
Ele não me trouxe nada também nada perguntou
Mal sei como ele se chama mas entendo o que ele quer
Se deitou na minha cama e me chama de mulher
Foi chegando sorrateiro e antes que eu dissesse não
Se instalou feito um posseiro dentro do meu coração

Conclusões:
- existe um poder libertador na água (sejam os quatro rios do paraíso, a água do baptismo os 4 rios da morte segundo a mitologia – um dos barqueiros que levava a alma dos mortos para o Inferno era Caronte. Há pouco tempo colocaram em órbita uma sonda com esse nome. Mas o que é que esta gente tem na cabeça?)
- as virgens têm tendências suicidas
- à terceira é de vez
- “As correspondências do Mundo” será o tema da minha tese de doutoramento

5 Comments:

Blogger formiga bargante said...

Mentira !

Eu já li e vou voltar, e voltar, e voltar a lêr !

12/12/05 1:26 da tarde  
Blogger Belogue said...

E eu nem percebo porquê. Mas deixe estar, não quero uma resposta. Para hoje já chorei o suficiente e ainda tenho de ir nadar. Só espero que alguém se lembre de virar o cetáceo na piscina.

12/12/05 2:09 da tarde  
Blogger kateboy said...

"As correspondências do Mundo". Estava a lembrar-me da teoria "a história repete-se", que os acontecimentos nunca são verdadeiramente novos e que já se passaram anteriormente, embora de uma maneira diferente, sempre com semelhanças a eventos do passado. Estaremos num looping, ou como o Fry da série "Futurama", somos só estúpidos?
** Mónica

12/12/05 3:37 da tarde  
Blogger Ji|||i said...

Pelo mesmo motivo o titulo "As Virgens Suicidas"!!!

12/12/05 7:04 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

minha cquerida

as suas ilaçoes sao pertinentes. muito!

Contudo,permita-me no seguimento da sua dialética hegeliana apresentar a minha sintese partindo da sua tese e das suas permissas :

-nao acha que a agua é escolhida como leito para a morte porque representa o principio e o fim no sentido heraclitiano? enquanto a origem de todas as coisas?

-O po que volta a ser po,alfa e omega,o principio e o fim de todas as coisas...
neste caso o corpo (fim) volta a origem de todas as coisas(e como tal tb à sua): a agua!

-a agua como elemento de passagem ...em constante devir"

e depois esta morte como o culminar dum grande amor, como a maior prova de amor...a nobreza e a grandiosidade do sentimento reside ai...na impossibilidade de o materializar, de lhe dar uma dimensao humana,de o banalizar!

o sagrado nao pertence ao terreno e a morte aparece(no seguimento da mais pura tradiçao romantica) como o elemento redentor desse amor!


A tragicidade da coisa reside ai!
As coisas belas nao foram feitas para se ter...mas para se sonhar!


Deixo-lhe um extracto de Heiner Muller que traduz bem aquilo que lhe acabo de escrever:

"Ontem comecei a matar-te meu amor,
hoje amo o teu cadàver,
quando eu estiver morto..o meu po gritarà por ti."


beijo muito

ed

13/12/05 2:07 da manhã  

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