- o carteiro -
lembram-se disto? pois é... antes do verso havia (há) uma versão em prosa:
Eram três horas da tarde. O Sol caía forte no charco da
floresta, e na sombra das árvores os pássaros procuravam dormir a sesta. O Dr.
Horácio, porém, não conseguia adormecer. Era um papagaio de asa vermelha,
doutorado em Florestas e Savanas pela Universidade das Aves, que podia com
frequência ser encontrado no seu ninho, a ler com os óculos na ponta do bico.
Estava há alguns dias a observar o charco e depois de mais uma sessão de banhos
dos hipopótamos, decidiu fazer o que há muito planeava: falar com o Rei. O Dr.
Horácio bateu asas e voou até árvores mais longínquas onde se encontrava a
descansar do calor da tarde, o Leão Ricardo, Rei da Selva. Ao vê-lo, o leão
bocejou e agitou a cauda para afastar as moscas, mas teve, porém, de acordar
porque o papagaio começou a papaguear:
- Dom Rei, Sr. Dr. Rei, Excelentíssimo Rei... Excelência...
- Que quer, Dr. Horácio? Para quê incomodar a esta hora? Não
vê que a sesta é sagrada? Vá dormir... - Respondeu o Rei ainda com os olhos
fechados.
- Excelência... tenho de lhe falar. Estive a observar os
hipopótamos no charco. Calculo, pela velocidade a que se movem na lama, que
muito em breve não haverá espaço para todos.
- Que se virem de lado, assim já cabem.
- Excelência, mesmo de lado os hipopótamos amontoam-se sem
espaço para os seus banhos.
- Pufff... que façam dieta! - Disse o Rei virando-se para o
outro lado.
- O problema não é dos hipopótamos, excelência, é do charco!
A conversa entre o Rei e o Dr. Horácio atraiu outros
papagaios que papagueavam entre si impedindo definitivamente o rei de dormir.
Este, notando a agitação compôs-se e perguntou:
- Então que vem a ser isto? O charco é pequeno? Mudem de
charco.
“Mudem de charco, mudem de charco”, ouvia-se do coro de
papagaios.
- O charco tem pouca água. - Respondeu o Dr. Horácio
- Eu mando vir mais água. - Disse o Rei.
“Mais água, o Rei manda vir mais água, o Rei manda vir mais
água para o charco”
- Como? - Perguntou o Dr. Horácio
- Como? Boa pergunta...
O Rei acariciou a juba, pensou e repetiu:
- Como?... Sr. Gouveia, diga-me como é que mando vir mais
água?
O Sr. Gouveia era o secretário do Rei. Era uma pantera
elegante e astuta que preferia, no entanto, passar os dias a afiar as garras no
tronco da bananeira a tratar das contas da floresta.
- Não manda vir. Ou chove ou não chove! - Disse o Sr.
Gouveia
“Ou chove ou não chove. Não manda vir, o rei não manda vir
água.”
Cansado dos papagaios o Rei, irado, rugiu:
- Vão-se embora ou mando cortar-vos as línguas e faço um
ensopado com elas.
- Excelência, sei que os papagaios gostariam de ir para
casa, mas tal como os hipopótamos não se podem banhar no charco porque não há
água, os papagaios não podem fazer os ninhos nas arribas dos charcos porque
estas estão secas e caem com facilidade. - Esclareceu o Dr. Horácio.
- E porque é que as arribas estão secas? - Perguntou o rei
ao Sr. Gouveia
- Porque não chove. Chove cada vez menos, os dias são secos
e muito quentes. - Observou o Sr. Gouveia.
- E de quem é a culpa, de quem é? Digam-me que eu mando cortar
a língua ao culpado! - Exclamou o Rei
- A culpa Excelência, se é que me permite falar, é do Homem.
- Atalhou o Dr. Horácio
- Do Homem? - Espantou-se o Rei
- Pufff.... Do Homem? Se ainda fosse dos pandas, ou dos
rinocerontes... Mas do Homem?! É que eu conheço mal o Homem. Gouveia, eu
conheço o Homem? - Perguntou o Rei
- Quem conhece bem o Homem é a minha prima Natércia que vive
num Jardim Zoológico. A gente - que é como quem diz - vê-se quando vou lá ver a
cidade e bicar nos caixotes do lixo. Às vezes apetece-me fast food, que
querem?! - Confessou o Dr. Horácio
- E o que é que que a sua prima sabe do Homem? - Insistiu o
Rei
- A minha prima está numa casinha pequena, com redes. Aquilo
não é como aqui que não há limites para voar. Deixam-na estar lá e dão-lhe
comida sem ela ter de caçar, mas não pode sair de lá. Nunca mais. - Respondeu o
Dr. Horácio
Fez-se silêncio. O Rei andava de um lado para o outro
enquanto o Dr. Horácio ajeitava os óculos na ponta do bico e o Sr. Gouveia
comia uma baga para ajudar à digestão. Os papagaios curiosos não sabiam se
deviam voar ou esperar pela deliberação do soberano.
- Está calor, vocês colocam-me questões difíceis e eu
necessito de dormir a sesta, ler os meus papéis e aí sim, deliberar! Podem
voltar para a sesta. É uma ordem, ouviram? - Disse o Rei
Os papagaios voaram sem grande alarido. Iam dar a notícia
aos hipopótamos e procurar arribas menos secas. O Dr. Gouveia saiu às arrecuas
a fazer vénias ao soberano e voltou para a sua observação do charco. Ficaram
apenas o Sr. Gouveia e o Rei. Gouveia elucidou o Rei:
- Este ano o charco está com menos água do que no ano
passado. Lembra-se quando era possível estarmos todos lá? Hipopótamos, jacarés,
papagaios? Agora o espaço não chega para ninguém. E ninguém consegue ficar ali
muito tempo com o calor que está. Chove quando devia estar calor, faz muito Sol
quando devia chover. O Homem é que originou isto tudo porque planta poucas
florestas e se não há plantas, a água que as plantas guardam não vai para cima,
para as nuvens, logo não chove. Se não chove a terra fica seca e arde com mais
facilidade e se há incêndios os animais não têm árvores para fazer ninhos.... É
preciso pensar bem no que fazer. Fazer ver ao Homem que os animais têm direitos
e não se vão calar. Não nos vamos calar! Vamos exigir o que é nosso! - E com
isto Gouveia deu um murro num tronco que ali estava ao mesmo tempo que ergueu
os bigodes espetando-os no ar.
A reunião ficou marcada para o dia seguinte. Toda a floresta
estava em alvoroço: os pombos-correio levavam as notícias a todos os cantos, os
hipopótamos tomavam banho um de cada vez e as serpentes perguntavam-se o que
iria sair dali:
- O que ssssserá que o Rei quer de nóssssss?
À hora marcada todos estavam na clareira do mangal para
ouvirem o que o Rei tinha a dizer
- Animais! Como sabem os hipopótamos não conseguem tomar
banho no charco. O charco está mais pequeno. Também fui informado que os
papagaios não conseguem fazer os ninhos nas arribas e os coalas tiveram de
abandonar os seus ramos lá para os lados do Lago Azul porque os incêndios
destruíram as árvores. Estamos a ser atacados pelo clima, por culpa do Homem.
Após muito pensar concluí que é nosso dever fazer frente a isto. Proponho que
falemos com o Homem! E quem vai falar com o Homem é o Horácio!
- Ahh.... Credo! Eu? - Perguntou o Dr. Horácio
O Sr. Gouveia explicou:
- Sim, estávamos a pensar em si. É um papagaio, logo fala e
como é Dr., deve saber falar bem.
- Eu... bem... sim, claro - Disse, pouco convencido das suas
palavras, o Dr. Horácio.
Partiu no próprio dia para a cidade, decidido a visitar a
prima e falar com o Homem lá do Zoo. Mas quando chegou e se dirigiu para o
tratador das araras, só lhe saiu:
“Louro”, “Olá”, “Beijinho”, “Louro”, “Dá a patinha”,
“Beijinho”...
O Homem pareceu não ter ficado impressionado e preparava-se
para o meter numa gaiola branca quando o Dr. Horácio bateu as asas e fugiu até
ficar sem fôlego, parando somente na floresta. Contou o sucedido ao rei e ao
Sr. Gouveia que agendaram nova reunião para o dia seguinte.
O dia amanheceu glorioso, mas não havia tempo para ficar
deitado ao Sol, já que a reunião com todos os animais da floresta estava
marcada para bem cedo. O Rei Ricardo dirigiu-se aos animais:
- Camelos, elefantes, rinocerontes e outros! Animais
pequenos e grandes! Quem vos fala é o vosso rei! Sabem que a conversa do Dr.
Horácio com o Homem não correu da melhor forma. Vamos, pois, tomar uma atitude
mais radical: vamos fazer uma manifestação. Os nossos cartazes serão feitos com
folhas de bananeira e sumo de amora. Caminharemos até à cidade para mostrar ao
Homem que estamos revoltados. Se o Homem não ouve as nossas palavras, lê as
nossas queixas.
Os animais, que gostavam de trabalhos manuais,
prontificaram-se de imediato a fazer os cartazes para a manifestação. E com os
cartazes prontos, e uma boa marmita, lá partiram numa caravana formada por
tigres, elefantes, girafas, macacos e crocodilos. O seu entusiasmo era tal que
não puderam deixar de ficar admirados com a ausência de pessoas. As ruas
estavam quase desertas e as poucas pessoas que nelas se encontravam fugiam à
passagem da caravana. Os elefantes ainda espreitaram pela janela de uma casa,
mas não viram ninguém. Esperaram: afinal, tinham comida para algum tempo. Mas a
comida foi acabando e os crocodilos, com fome, queriam comer o Homem. Os tigres
acharam que era boa ideia voltar e contar ao rei o que acontecera. As girafas e
os macacos concordaram. E os elefantes também já estavam cansados daquela
brincadeira.
O Rei desta vez demorou um pouco mais a marcar a reunião,
mas daí a dois dias havia nova deliberação:
- Animais da floresta! Como sabem o Homem não quis ver a
nossa manifestação. Por isso vamos ter de tomar outra medida. Desta vez vamos
fazer greve!
- Greve? Mas nós não trabalhamos! - Disse a preguiça.
- Eu já trabalhei... num jardim zoológico. Mas fugi de lá
quando estavam a fazer a limpeza - Disse a flaminga Rosinha
- Calma, calma. Estas resoluções nunca agradam a todos.
Deixem-me explicar. - Interveio o Sr. Gouveia
O Sr. Gouveia falou aos animais:
- O que vos pedimos é que não façam o que costumam fazer. O
Dr. Horácio vai enviar um pombo-correio à sua prima Natércia que está no Zoo,
com algumas instruções. O primeiro milho, claro, vai ser para os pardais, mas
mais cedo ou mais tarde vão render-se à nossa greve. Nem que a vaca tussa!
- Isso é muito ambicioso e para além disso o charco ainda
não secou. - Fez notar o urso - Ainda é cedo, podemos hibernar...
- Aí é que está a questão -, respondeu o Sr. Gouveia. - Não
há tempo. Cada dia que ficamos a dormir é um dia em que cortam árvores, um dia
com incêndios, um dia em que não chove... Ainda há cinco Verões havia mais água
no charco e cada Verão que passa há menos. E não é só no Verão; as estações
estão mais quentes. Ou então faz tanto frio que os animais mais pequenos não
aguentam e mudam-se. Ou morrem.
Este último dito estabeleceu o silêncio na assembleia de animais.
Todos conheciam um amigo ou tinham um familiar que tinha morrido pelo calor
extremo, pelo frio de rachar, pelos incêndios, pela seca... O Sr. Gouveia prosseguiu:
- Não pensem que isto
vai ser fácil.
- Eu bem disse. - Referiu o urso.
- É preciso que pensem bem antes de alinharem com esta
greve.
Os animais ficaram pensativos...alguns teriam de abdicar das
suas rotinas e sabe-se lá mais o quê. Mas entre começar a greve, mesmo sem
garantias de sucesso, e ficar de patas cruzadas, os animais preferiram a greve.
Nos dias seguintes os comportamentos foram mudando. Cada
animal contribuía individualmente para a greve de todos. Agora na floresta era
possível ver os elefantes a rirem, com a tromba para o alto, já que tinham
decidido que não iam mais ficar de trombas enquanto durasse a greve. Os
crocodilos por vezes faziam companhia aos elefantes. Tinham-se deixado de
lágrimas de crocodilo e andavam satisfeitos da vida. A hiena Hilária, pelo
contrário, deixou de rir e amarrou mesmo o burrinho. Ninguém lhe ouvia uma
gargalhada e chegava a ser até muito indelicada. Ora os macacos eram os mais
desorientados pois tomaram a decisão de não ficar cada um no seu galho. Andavam
pelos galhos uns dos outros e esqueciam-se do casaco num, do gorro noutro...
Ao princípio tudo corria bem, mas o tempo passou e quando
começaram os amanheceres outonais o Sr. Gouveia notou que a floresta estava
diferente: como as abelhas não recolhiam mel das flores os ursos começaram a
comer plantas que faziam falta às borboletas. Ora as borboletas foram
queixar-se aos melros que se decidiram a aborrecer as abelhas piando muito alto
na hora da sesta. As abelhas estavam de greve e por isso não podiam picar os
melros, o que os irritou muito e levou a que fossem queixar-se aos camaleões e
pedissem que estes caçassem as abelhas. As abelhas souberam do sucedido e
sentaram-se nas patas traseiras dos camaleões - onde eles não chegavam com a
língua - e começaram a zumbir, o que fez com que os camaleões chorassem e
alertassem os crocodilos, seus primos afastados. Os crocodilos juntaram-se aos
camaleões e como se não bastasse chegaram os rinocerontes a dizer que este
problema só existia porque os hipopótamos queriam tomar banho no charco. Todos
estes animais juntos acordaram o Rei. Preparava-se este para ir ver de que se
tratava quando o Sr. Gouveia chegou esbaforido acenando um papel que trazia na
pata. Era um telegrama da prima Elisama, uma gata de Bengala que vivia na
cidade em casa do seu humano. O bilhete dizia o seguinte:
“Amigos:
Espero que todos se encontrem bem. Aqui na cidade o humano
está desorientado. Queixa-se que esta greve lhe está a trazer problemas: sem os
diques há inundações, sem as abelhas faltam plantas, sem os elefantes falta água...
O Homem pede tréguas e pede que a Natureza funcione como antes. O que
acham? Miaus, Elisama”.
O Sr. Gouveia acabou de ler o telegrama e olhou para o Rei.
- Que devemos fazer, Gouveia? - Perguntou o Rei com os olhos
esbugalhados
O Sr. Gouveia pensou. Desde o início da greve a floresta tinha
mudado. Era verdade que os incêndios tinham acabado, que havia espaço no charco
para todos os hipopótamos e que as arribas eram tão sólidas quanto antes. Mas a
floresta estava a desarrumada, os animais desavindos e de nada servia esta luta
se o Homem não sentisse os seus efeitos. E pelos vistos, sentia.
- Acabar com a greve - Respondeu o Sr. Gouveia - Os troncos
dos castores andam pelo chão, os ursos foram à despensa da floresta e comeram
todo o mel que lá havia. Os elefantes zangaram-se com as hienas porque estas
pararam de rir e agora estão de trombas. As moscas - sim, as moscas - andam
quietinhas, mas já não fazem voos rasantes sobre os cocós para ajudarem na
decomposição. Agora que há água no charco os hipopótamos não falam com os
rinocerontes porque dizem que a água é toda para eles. Temos de acabar com
isto. Começa a ser mau para nós e parece que já serviu de exemplo ao Homem.
“Acabar com a greve, o Gouveia quer acabar com a greve. O Gouveia quer, o Gouveia vai acabar com a greve”.
Retomaram, pois, atividade, os banhos no charco e os ninhos
nas arribas. O Sol voltou no tempo dele e os incêndios cessaram.
2 Comments:
Boa prosa. Eu faria umas ilustrações e publicaria.
Já publiquei!
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