sexta-feira, março 25, 2016

- ars longa, vita brevis -
hipócrates
 
bom, hoje não tinha nenhum "antes e depois". quer dizer, tinha um mas não me satisfazia, por isso resolvi apresentar-vos isto. isto é um quadro do Manet. coisa normal, certo? nem por isso... não sei se o Manet era um misógino. ele disse um dia acerca da Mary Cassatt, ou da Berthe Morisot (não interessa bem qual delas foi) algo parecido com: "esta mulher tem qualquer coisa [no sentido do talento]. só é pena ser mulher". Eu não o tinha por machista. achava - e acho - que ele até era como o nosso presidente: "quase feminista".
 
o que me interessa não é falar sobre feminismo ou machismo. parece-me que apesar daquela frase, o Manet sabia do valor das mulheres e dava-lhes um lugar que era mais do que o mero papel de amante que espera pelo seu amado, enquanto se entretém com trivialidades. lembremo-nos que ao mesmo tempo que o Salon admirava isto:
 


















Bouguereau
Day
1884
Colecção Privada


Manet pintava mulheres reais (e não mulheres usadas como alegorias), nuas, junto a homens vestidos, e usava os animais (que em Bouguereau e Cabanel servem para entreter a mulher, como se ela estivesse ao nível do animal e sempre nua, à espera de macho e na sua condição... animal) de outra forma. Na Olímpia, temos uma mulher nua, é verdade, mas que nos olha nos olhos; uma mulher nua cujo modelo era uma prostituta; uma mulher nua que não é deusa, nem santa, nem alegoria. E junto a ela, quase a confundir-se com o fundo, um gato preto.














Edouard Manet
Olympia
1863
Musée d'Orsay, Paris
























Edouard Manet
Olympia (pormenor)
1863
Musée d'Orsay, Paris


Na "Mulher com papagaio", vemos uma mulher vestida - e muito tapada - com um papagaio, conhecido por ter a capacidade de repetir o que os humanos dizem. Podemos pois considerá-lo um animal inteligente. A sua dona não podia também ser menos que isso: uma mulher inteligente. Mas cada um está no seu "poleiro": a mulher existe por si, não estende os dedos para o papagaio; este por sua vez ocupa o seu lugar. (há um quadro, cujo nome não recordo, que mostra uma mulher nua em cima de um leito a brincar com um pássaro que pousa nos seus dedos. ao lado está o poleiro do pássaro vazio. nesse sentido, estas duas pinturas são antagónicas).
 
Manet
Woman with parrot
1866
MoMA, Nova York
 
Manet
Woman with parrot (pormenor)
1866
MoMA, Nova York
 
Aqui Manet apresenta uma actualização de um quadro de Goya. Para o que nos interessa, destaquei o cão, junto a senhora sentada. As mulheres olham em frente; o  homem, em segundo plano, olha para uma delas; e um segundo homem, no fundo da sala, olha para a outra mulher. São elas que estão à varanda e eles ocupam o segundo plano o que aliás é muito comum nos quadros do Manet. Nestas pinturas, e em outras como "Nana", "On the beach", "The Reading", o homem é um acessório, um apontamento, relegado para planos mais distantes, indefinido, na sombra, ou até cortado (veja-se o caso de "Nana").

Manet
The Balcony
1868
Musée d'Orsay, Paris
 
Manet
The Balcony (pormenor)
1868
Musée d'Orsay, Paris
 
A modelo deste quadro é a mesma que Manet usou para pintar o Olímpia., de seu nome Victorine. Parece que a miúda teve uma vida complicada: um dia simplesmente desapareceu porta fora e nunca mais voltou. A criança era a filha de um amigo de Manet, de seu nome Alphonse Hirsch, em cujo jardim, situado perto da Gare de Saint-Lazare a cena foi composta. É difícil de perceber, mas a modelo segura no colo um cachorro, muito pequeno mesmo. É uma criatura que se confunde com o jornal e que eu interpreto da seguinte forma:
este quadro tem tudo o que é contrário à ideia de maternidade com a mulher que lê o jornal e olha para nós, mais interessada em outras coisas do que aquelas que aparentemente deveriam ser as suas como cuidar da criança, dar carinho ao cachorro. ela está mais interessada na leitura. a leitura era por vezes considerada má para as mulheres. os homens temiam que elas ficassem histéricas e cheias de ilusões por lerem demasiados romances. por isso se casavam cedo e os pais temiam aquelas que recusando candidatos, passavam os dias entre os livros.
Manet
The Railway
1873
The National Gallery of Art, Washington
 
Manet
The Railway (pormenor)
1873
The National Gallery of Art, Washington
 
Quando Napoleão III casou com uma noiva espanhola, a moda "espanhuela" assolou França e Manet não ficou indiferente a esse interesse generalizado. Apesar de nos parecer uma cena normal de uma mulher a tourear, a verdade é que a pintura deu origem a alguns escândalos. A modelo é, mais uma vez, Victorine Meurent que também foi modelo do Déjeuner sur l´herbe. É esta mulher vestida de homem (de corsários, com o cabelo escondido) que domina a força do touro, uma força evidentemente masculina.
Manet
Mademoiselle V... in the Costume of an Espada
1862
Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque
 
ManetMademoiselle V... in the Costume of an Espada (pormenor)
1862
Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque
 
Não por isso de estranhar este quadro que parece muito simples, mas tem o que se lhe diga. Pode ser que seja uma homenagem à mulher, o que de resto corroborava o acima escrito. Ela - Madame Guillemet - olha para fora da pintura, todo o seu corpo e rosto de viram para o exterior; ou seja, nela tudo se desenvolve da esquerda para a direita, como uma progressão. Nele - Monsieur Guillemet - pelo contrário tudo é ensimesmamento, sombras, um corpo curvado sobre si mesmo. Ele quase lhe toca na mão e parece até olhar nesse sentido, mas ela mostra-se quase absorta. Será um casamento a passar por problemas? Eles devem ser casados: ele pelo menos tem aliança e quase toca na mão dela o que nos leva a crer que ela seria sua mulher. Amante... não me parece. Se assim fosse tudo seria fogo, química, mas não... No lado dela há flores e pormenores; no lado dele grandes palmas sem detalhe. e por fim, o corpo dela, a fazer pendant com o vaso, não só na linha, mas também na cor. se o Manet era um misógino, não parecia nada... 
 
Edouard Manet
The Conservatory/ The Winter Garden
1878-1879
Gemaldegalerie, Berlim
 
Edouard Manet
The Conservatory/ The Winter Garden
1878-1879
Gemaldegalerie, Berlim

2 Comments:

Anonymous pedro b. said...

olá Beluga,
O quadro “cujo nome não recordo, que mostra uma mulher nua em cima de um leito a brincar com um pássaro que pousa nos seus dedos”, é de Gustave Courbet, Mulher com papagaio [La Femme au perroquet], 1866. Encontra-se actualmente no Metropolitan Museum of Art, de Nova Iorque:
“When this painting was shown in the Salon of 1866, critics censured Courbet's "lack of taste" as well as his model's "ungainly" pose and "disheveled hair." Yet the provocative picture found favor with a younger generation of artists who shared Courbet’s disregard for academic standards. Manet began his version of the subject (89.21.3) the same year; and Cézanne apparently carried a small photograph of the present work in his wallet.”
http://www.metmuseum.org/art/collection/search/436002

Sobre o papagaio de Manet, a página do Metropolitan diz também o seguinte:
“Recent scholars have interpreted it as an allegory of the five senses: the nosegay (smell), the orange (taste), the parrot-confidant (hearing), and the man’s monocle she fingers (sight and touch).” 
http://www.metmuseum.org/art/collection/search/436964

Continuação de boa Páscoa,
beijos,

26/3/16 6:24 da tarde  
Blogger Belogue said...

Olá professor, boa páscoa

É mesmo esse o quadro de que estava a falar! É contraditório...: o courbet foi recusado e aceite no salon várias vezes. Os seus temas realistas eram criticados, mas o salon aceitou outras pinturas menos "chocantes". Acho que no início de carreira ele queria ser legitimado pelo salon, mas depois começou a fazer o que queria sem ligar aos pré-requisitos do salon (pinturas históricas, mitológicas, bíblicas). Este quadro foi rejeitado no primeiro ano em que foi apresentado, mas mais tarde, foi aceite. Não é de facto como a vénus do cabanel, o paradigma do academismo defendido pelo salon: esta mulher não tem a beleza clássica. Falta-lhe ser loira e ter a seus pés a fauna e a flora do mundo num cenário menos sombrio. Mas dá para perceber a ideia:ela espera o amor, o macho; é passiva e obediente.
Até breve, b.

27/3/16 3:59 da tarde  

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