segunda-feira, janeiro 23, 2012

- o carteiro -

o paper de Iconografia Profana III e última (mais havia a dizer, mas tinha um número limite de páginas)

Em meados do século XIX, Paris era a cidade para onde afluíam todos os que procuravam arte, progresso, indústria e grandes emoções. E um dos locais que os dandies, as demi-mondaines, os burgueses e os turistas frequentavam era justamente o Folies-Bergères, um bar repleto de prostitutas onde se podia assistir a programas de variedades e, obviamente, ver e ser visto. Walter Benjamim escreveu a propósito de Paris em 1929, que era a cidade dos espelhos e se o autor alemão não se referiu, com isto à galeria de espelhos em Versalhes, podemos imputar-lhe a referência a Manet neste seu bar. (Fig. 14) O pintor não retratou a cena in loco, como faziam muitos dos seus contemporâneos, mas antes no atelier. Por isso a luz que vemos não é a luz real do espaço, nem o poderia ser já que num bar privilegia-se sempre uma luz mais coada, menos reveladora. Note-se que as senhoras admitidas eram, na sua maioria, prostitutas e a prostituição não era legal. Embora o bar, à data, já fosse iluminado por uma das grandes invenções da época – a luz eléctrica – e também pelos candeeiros a gás, estamos em crer que nenhuma das duas opções provocaria tal incandescência. Também a rapariga ao balcão, de seu nome Suzon, não foi pintada no seu posto de trabalho, tendo-se deslocado até ao atelier de Manet. Este balcão, nesta pintura, não teria aliás razão de existir caso Manet tivesse sido fiel à realidade, já que nesta os três balcões do Folies-Bergères situam-se no exterior do edifício, junto aos jardins. No espelho que vemos no fundo, e que ocupa quase a totalidade da tela reside grande parte do entendimento da mesma. Vemos como reflete a jovem, o cavalheiro de chapéu e as senhoras ao fundo, mas escapa-nos um pormenor: se Suzon se encontra de frente para nós, fitando-nos como que esperando o pedido de uma taça de champanhe, porque não tapa ela, com a sua figura, todo o reflexo que a mesma teria caso Suzon se encontrasse mesmo de frente? Para a vermos refletida quase a ¾, seria necessário que o espelho estivesse em posição oblíqua, o que não acontece como o corrobora a moldura, paralela à moldura do próprio quadro. Aqui, tal como no Dejeuner sur l’herbe, Manet quebrou regras que os académicos do seu tempo viam como inquestionáveis. Paralelamente esta distorção da verdade matemática permite-lhe dar a conhecer um pouco mais do espaço: as duas senhoras refletidas no lado esquerdo do espelho são uma conhecida de Manet, a demi-mondaine Méry Laurent de vestido branco e atrás dela, de bege, a atriz Jeanne de Marsy. Elas constituem quase a exceção na tela já que as senhoras eram apenas admitidas de duas em duas semanas e graças a um “livre-trânsito” disponibilizado pelo gerente do local. No canto superior esquerdo do quadro, um pouco acima da cabeça da senhora Laurent, podemos ver uns botins verdes no trapézio, elemento esse que sustenta a existência de espetáculos de variedades naquela casa.
Fig. 14
Manet
Um bar no Folies-Bergères
1882
Courtauld Institute, Londres

Do lado direito do quadro, está presente uma figura um pouco enigmática, que se por um lado vem de encontro ao que foi dito acerca da quebra das regras de perspetiva, por outro não deixa de nos ser estranha. (Fig. 15) O “ele” e o “nós” confundem-se: o homem está perto o suficiente no reflexo, mas não na realidade, já que se estivesse ali junto ao balcão, estaria pintado lá. Por outro lado, a imagem do espelho, com a jovem Suzon ligeiramente inclinada para ele, pressupõe um grau de intimidade que o seu olhar, quando visto de frente, dissuade uma vez que ela está distante e talvez até, um pouco triste. Ele é o dandy/flanêur (uma e outra coisa não são a mesma) que a seduz, que procura conversa ou companhia que procura um contexto para a sua existência e presença naquele espaço, tal como nós. Um pormenor, que não existe no espelho, mas fora dele, tem de ser referido. Manet era um grande conhecedor de iconografia clássica. A isso não será alheia a presença, em alguns dos seus quadros, de naturezas-mortas, que não sendo o tema das telas, ajudam-nos a compreender as mesmas. Note-se que as naturezas-mortas eram pinturas non gratas, ou pelo menos, menos consideradas quando comparadas com cenas históricas, por exemplo. Estariam portanto no fim de uma escala de importância que os académicos seguiam à risca.

Fig. 15

Porém, no balcão podemos ver uma jarra com duas rosas: uma branca e outra rosada. As rosas são para a iconografia da Antiguidade símbolo de Vénus e estavam associadas à Virgem Maria nas pinturas religiosas. Para se certificar que estaríamos atentos a estes pormenores, Manet coloca não só a rosa branca (símbolo de pureza) junto à rosa pálida (símbolo do amor divino), como as arranja numa jarra com água, símbolo de pureza, e repete-as no corpete de Suzon. (Fig. 16) Avançaríamos com a hipótese de esta mulher de desdobrar em duas: ser a imagem divina que “serve o seu Senhor” e a Vénus que no espelho atende o seu senhor. Ainda que fique sempre a dúvida, face às laranjas que se encontram no balcão e que já foram usadas por Manet em pinturas onde figuravam prostitutas, se esta não seria apenas mais uma rapariga do campo que chegava à cidade procurando manter simultaneamente a sua ingenuidade e comer à guisa de alguns favores sexuais. Honni soi qui mal y pense.
Fig. 16