segunda-feira, janeiro 09, 2012

- o carteiro -

o paper de Iconografia Profana sobre o tema do espelho na pintura - parte II

Em 1656, era Velázquez pintor da corte do rei Filipe IV de Espanha quando executou esta obra onde o espelho exerce um papel central. (Fig. 9) Um aparente retrato de família, muito informal torna-se pela mão de Velázquez a revelação de muito mais: é a revelação das relações familiares que se viviam na família real, a revelação do futuro e a revelação das práticas que a corte tinha com os seus súbditos. Las Meninas mostra uma sala do palácio real onde de forma quase informal a infanta Margarida Teresa, primeira filha do rei Filipe IV e da rainha Margarida da Áustria, numa primeira análise, parece posar para o pintor. A jovem, que olha para fora; ou seja, para os seus pais e por consequência para nós que somos os observadores, assume já a sua noção de posição de Estado. Não obstante ter apenas cinco anos, a infanta revela auto-controlo e consciência da situação. Ela olha para os seus pais e não para nenhuma das aias ou damas de companhia que a rodeiam, não obstante a da esquerda se ajoelhar. Impávida, mantém, tal como as outras personagens, o cumprimento do protocolo que em Espanha era mais apertado do que em qualquer outra corte europeia, mesmo nesta época em que o poderio espanhol era uma sombra do que havia sido. A infanta era o orgulho dos pais – talvez mais da mãe do que do pai que preferiria um varão para dar continuidade ao legado – e a sua boa figura é uma esperança pictórica da Espanha de então, já que a Rainha Margarida havia sido mal sucedida nas gestações posteriores (duas crianças do sexo masculino morreram na infância e uma terceira nasceu com deficiências). A dama da esquerda, que lhe estende uma bandeja com um bucaro com água era Dona María Sarmiento, enquanto a da direita era Dona Isabel de Velasco. Porém, estas não são as únicas personagens junto a Margarida Teresa: ela surge acompanhada de dois anões. Trata-se da alemã Maria-Bárbola e do italiano Nicolas de Pertusato, dois “monstros”, como também eram apelidados, que circulavam na corte como se se tratassem de animais de estimação ou atrações circenses e que assim, através da sua fealdade e disformidade, tornavam mais suportável os rigores da época e do protocolo da corte. Um dos anões, Nicolas é no quadro a única personagem que quebra esse mesmo protocolo ao brincar com o cão e provocá-lo, colocando o pé em cima do mastiff. Para além destas personagens surgem mais em sombra Dona Marcela de Ulloa, freira, junto a ela um homem cuja origem se desconhece e nas escadas Don José Nieto Velázquez, responsável pelas tapeçarias do palácio.
Fig. 9
Diego Velázquez
As meninas
1656-1657
Museu do Prado, Madrid

Três contradições surgem neste quadro. Uma deles prende-se com o próprio pintor que se retrata com a Cruz da Ordem de Santiago ao peito. (Fig. 10) No entanto, quando o quadro é realizado em 1656, Velázquez ainda não era membro da mesma tendo sido apenas três anos depois. Talvez nesta época ainda estivesse a decorrer o processo de legitimação do candidato a membro da ordem, processo esse que incluía, por exemplo, análises aos antepassados (o candidatado não podia ter sangue mouro ou judeu) e o testemunho de cerca de 100 pessoas que assegurassem que o pintor nunca tinha exercido a sua atividade por dinheiro. A outra contradição ou falseamento da verdade é o reflexo dos reis no espelho. Aparentemente testemunham um momento feliz em que a família se encontra toda reunida, mas rei e rainha, na realidade, não eram tão companheiros quanto parecem fazer crer.
Fig. 10

O rei tinha várias amantes e filhos ilegítimos e D. Margarida uma pessoa doente, sozinha e amarga. (Fig. 11) A terceira contradição prende-se com a pintura em si. O que estaria Velázquez a pintar? Não poderia estar a pintar a infanta e a cena que junto dela se desenrola já que o quadro se encontra à frente da menina. Quer isto dizer que para a ver o pintor teria de olhar constantemente para trás. O que acontece é antes uma suspensão do momento, como que uma fotografia. Presumimos que rei e rainha chegaram ao espaço num momento informal e todos se detêm perante os reis. Velázquez acentua a sua presença colocando-os no espelho e fazendo deles os catalisadores da pintura. O espelho, que não era uma novidade nas pinturas, tem aqui o papel de organizador do espaço já que a sua posição é central na pintura: o seu lado superior marca a linha imaginária que separa o quadro em duas partes. Para além disso este espelho encontra-se mesmo no centro da parede do fundo. No entanto, apesar de se encontrar em posição privilegiada, o espelho não reflete o espaço a que tem acesso, mas apenas os reis. A epifania que nele se dá manifesta a presença divina dos monarcas e estabelece um ideal para a infanta e restantes presentes. Desta forma o espelho não pode ser apenas visto como uma forma propagandística da corte espanhola já que implica a noção de virtude como uma qualidade da realeza. Os reis são como que o espelho do reino, levando assim os vassalos a mimetizar os seus atos e gestos.
Fig. 11

Outra zona do quadro tem papel central: a abertura onde se encontra Don José. Ali se situa o centro de um triângulo que tem como lados o realizado pelo pé do anão mais à direita até à base da pintura, o que segue as costas da dama mais à esquerda e aquele que se guia pelo cabelo da anã e o rosto do homem junto à freira. (Fig. 12) Também as linhas de fuga das janelas, tela e candeeiros se dirigem para este ponto. Em termos de espaço da pintura o aposento onde todos se encontram também se estende ao observador. Assim, do observador até à porta estamos perante um espaço real, enquanto o espaço ideal é aquele que se desenvolve no espelho e o imaginário, aquele que está retratado nas pinturas. No quadro, a cada uma das personagens foi dada uma individualidade: a infanta, que é a que mais luz recebe, luz essa vinda de uma ou duas janelas à direita (as três restantes parecem-nos fechadas), estabelece paralelo com a luz vinda do fundo, embora Don José não tenha recebido, em termos de técnica, a mesma atenção dedicada à infanta. Os reis ao fundo estão na sombra e diluídos, embora o seu retrato esteja iluminado, como que pertencendo a um mundo que poucos teriam acesso. Em termos de linhas de força do quadro, as que predominam são as horizontais e as verticais, não obstante estarmos perante um exemplar do Barroco. Estas aparecem-nos das janelas, dos quadros e espelho e do que é possível observar nas paredes. No entanto Velázquez colocou no quadro três linhas irregulares, paralelas entre si e que servem de contraponto às linhas horizontais e verticais. (Fig. 13)
Fig. 12


Fig. 13

4 Comments:

Blogger AM said...

beluga, desculpe a minha atrevida ignorância
não existirá um outro triângulo dentro desse?
um triângulo ao "centro",
um que passa por cada umas das figuras à esquerda e à direita da figura "branca", que segue pelo espelho e pela porta e que tem como vértice um "ponto" na dobra entre a parede e o tecto?

9/1/12 11:03 da manhã  
Blogger alma said...

Volto já ...
lendo o comentário do AM, parece estamos perante uma tendência ?!
triângulos vértices...

9/1/12 3:09 da tarde  
Blogger Belogue said...

Caro António: estive a observar a pintura e acho que percebi o que queria dizer, mas confira lá:
se traçássemos o triângulo de que fala ele passaria pela figura que serve o copo com água, atravessaria o espelho em diagonal, bateria no canto da porta e seguia até cima, para depois descer, passar pela freira e pela dama de companhia da direita e unir-se aos pés da primeira dama? seria quase um triângulo dentro deste? posso postar a figura que descrevi, mas não sei se era isto que o António estava a pensar.

Cara Alma:
por falar em triangulação... lembrei-me do futebol.

9/1/12 11:32 da tarde  
Blogger João Barbosa said...

o quadrado da hipotenusa é igual ao quadrado dos catetos... estou com o AM... esta cena (dos triângulos) não me assiste

18/1/12 5:34 da manhã  

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