quarta-feira, setembro 07, 2011

- o carteiro -

(continuação)
Qual a razão para os artistas se retratarem? Não é por uma questão de vaidade, assim como não é, apenas por vaidade, que monarcas, clérigos e aristocratas se fazem pintar. Da mesma forma, não é por uma questão de vaidade que soldados, artesãos e camponeses figuram em telas. Ainda que se observem diferenças, ambos os lados da sociedade posam para o pincel dos artistas por questões de perpetuação da memória histórica. Uns são chamados a ficar para a História, outros colocam-se na História (veja-se a Mona Lisa, por exemplo) outros convocam-se e alguns simplesmente não sabem que são retratados (muitos deles sem nome, em representação do grupo). Há porém, no caso dos pintores que se retratam, razões de ordem prática que nem de nos passam pela cabeça. Sir David Wilkie, em The Blind Fiddler acabou por inserir o seu próprio rosto na cabeleira de uma mulher. Francis Bacon dizia que se pintava porque toda a gente à sua volta estava a desaparecer, a "morrer como moscas", o que o fazia entediar-se e decidir por se pintar. Esta ideia de que o artista se pinta, à falta de melhor, é porém enganosa, pois dá a entender que o pintor compreende o seu rosto com facilidade e que é também por isso que se pinta. Ora, na realidade os artistas (incluindo Picasso que era um desenhador fluente) tinham muita dificuldade em fazer uma avaliação imparcial de si a nível físico. Talvez por isso, muitos artistas se tenham retratado como o melhor dos seus antecessores. Van Dyck pintou-se como Rafael num duplo retrato com um amigo, Rembrandt preferiu mimetizar as poses de Rubens e Ticiano, enquanto Otto Dix tomou como modelo Hans Holbein. Whistler tentou a pose de Velázquez em Pablo de Valladolid.

Van Dyck
Sir Endymion Porter and the artist
1632-1641
Museu do Prado

Agora, meus amigos, quando o artista estava sob a alçada de um mecenas e tinha por isso mais tempo (e apoio financeiro), esmerava-se. Todos eles caem na tentação de exibir aquilo que podemos considerar atributos, mas que eram na verdade um cordão de ouro ao peito, cordão esse que marcava o encomendador e o executor. Exemplos surgem-nos de Ticiano (com o seu cordão, presente do Imperador Carlos V); Van Dyck no "Self-Portrait with sunflower" e até Rembrandt, cujo cordão deve ter sido comprado.
Van Dyck
Self-portrait with a sunflower
1632
Colecção Privada

Há porém o caso de pintores que se auto-retrataram não para memória futura, por prestígio ou vaidade, mas porque... teve de ser. De formas diametralmente afastadas Judith Leyster e Poussin pintaram-se porque teve de ser. Ela foi uma pintora muito confundida com Frans Hals, devido ao seu estilo alegre semelhante ao do referido pintor. Talvez como forma de se impor, Leyster compôs este auto-retrato no qual nos convida a entrar na pintura, a puxar uma cadeira e sentar, num estilo informal, tanto que o quadro parece uma fotografia que, por ser para íntimos, pode ser mesmo cortada no cotovelo. Leyster sorri até porque o seu trabalho a isso leva: vejamos que ela pinta cenas alegres e parece partilhar dessa alegria que pinta, inclinando-se para o lado oposto da personagem como se estivessem a dar uma gargalhada. Poussin por seu lado distancia-se da pintura, não porque a esteja a mostrar a rir - ele está aliás bastante sério - mas porque sente o tédio de posar para si próprio. O auto-retrato foi pedido por um amigo de Poussin que tentava há anos (em vão), persuadi-lo a fazer-se retratar. Como disse em carta ao amigo, o pintor vê-se obrigado a pintar-se visto não existir em Roma nenhum outro homem a quem essa tarefa pudesse ser confiada. Poussin é apanhado quase num virar de ombros, mas com os olhos sublinhados de vermelho e o corpo tão rígido que temos de concluir que ele está ali há algum tempo a pintar-se. Houve quem tivesse visto neste auto-retrato uma analogia com a Maçonaria: na inscrição pintada atrás do pintor (datada de 1650, em tom formal na terceira pessoa e que confirma a sua ligação com a arte da Roma Antiga), na pirâmide formada pelo diamante que lhe orna o dedo (também identificada com o Estoicismo) ou no olho presente no diadema da mulher atrás dele. Nunca gostei muito do Poussin, mas depois de ler isto acerca dele passei a gostar um bocadinho. Ele não era um mercenário como muitos pintores da época: as suas composições eram muito ponderadas, as telas demoravam o seu tempo e tudo tinha uma razão de ser. O mais curioso é que ele disse que o seu retrato não poderia ser pintado por mais nenhum ser humano que não ele, mas não por sobranceria. Este foi aliás o único retrato que se lhe conhece. Dele ou de outra pessoa qualquer.

Judith Leyster
Self portrait
1635
National Gallery of Art, Washington

Poussin
Self portrait
1650
Museu do Louvre, Paris

Outros artistas dizem ao que vêm. Murillo por exemplo pintou um auto-retrato onde inscreveu uma mensagem sintética e inteligível: "Bartolomé Murillo a retratar-se para preencher os desejos e pedidos dos seus filhos". Murillo tinha 12 filhos que continuou a criar mesmo após ter enviuvado e os seus quadros tinham a presença constante de crianças, geralmente crianças pobres e órfãs. Estas eram aliás muito apreciadas, tanto que a Espanha teve de proibir a sua exportação ou corria o risco de ficar sem os seus Murillos. E de facto ele era um dos artistas com mais sucesso na Espanha dominada por Velázquez. Neste seu auto-retrato ele aparece numa moldura oval, quase fúnebre, como se fosse uma pintura dentro da pintura.
Murillo
Self portrait
1670-1672
National Gallery, Londres

(continua)