quarta-feira, agosto 31, 2011

- ars longa, vita brevis -
hipócrates

retomo aqui (quer dizer... sei lá se retomo. depende para onde estiver virada), o conjunto de posts dedicados ao auto-retrato. Vamos desta vez para Miguel Ângelo, que eu não sabia, mas se pintou mais do que uma vez. Toda a gente sabe, ou diz-se isso, não se sabe se é verdade, que Miguel Ângelo se retratou na Capela Sistina, quase no centro do Juízo Final, na pele de São Bartolomeu (que morreu esfolado vivo) a pender da mão do próprio. o rosto dessa pele é a de Miguel ângelo, segundo os entendidos. (Apesar de poder auto-retratra-se quando e como desejasse, o pintor não se faz retratar como um homem de poder. Nos seus autoretratos miguel ângelo procura mostrar mais o seu interior em detrimento do corpo ou do rosto. É curioso Miguel Ângelo ter pintado o seu retrato tantas vezes (ou pelo menos mais do que aquelas que são comummente conhecidas), já que ele era avesso à banalidade. Vasari, que o conhecia bem, dizia que Miguel ângelo detestava essa vulgaridade, o comum, o quotidiano, principalmente quando alvo de uma pintura já que geralmente a banalidade não compreendia a beleza perfeita das coisas. Aliás, quando um dia Lorenzo e Giuliano de Médici lhe pediram que os esculpisse, Miguel Ângelo acabou por confessar que não obstante ter feito tal peça, não foi fiel à verdade: conferiu aos dois mais beleza do que aquilo que na realidade possuíam.
Miguel Ângelo
Last Judgment (pormenor)
1537-1541
Capela Sistina, Vaticano

Para além daquilo que podemos ver na Capela Sistina Miguel Ângelo também se auto retratou em outra obra: na Pietá Florentina, também chamada de Deposição. Ali, para além de Cristo, de Maria Madalena e da Virgem podemos ver uma quarta figura que poderá ser Nicodemus que, segundo o Evangelho de S. João ajudou José de Arimateia a recolher o corpo de Jesus da cruz (João 3, 1-9). Assim, e tendo em atenção que essa personagem da escultura em questão não é José, seria então Nicodemus, de capuz. Ora, como é que sabemos que não é José? Pois, porque assim como Van Gogh é reconhecido pela orelha cortada, Dali pelo bigode e a Frida Kahlo pelas sobrancelhas, Miguel Ângelo é facilmente identificado pelo nariz partido (façanha essa conseguida pelo seu colega, mas também rival Pietro Torrigiano, aquando de uma rixa entre os dois). Como homem preocupado com a beleza das coisas, era muito exigente, mesmo consigo e por isso tentava a todo o custo evitar a sua feiúra, embora tivesse, diga-se em abono da coisa, muito orgulho no seu nariz partido. Estava também, aos 60 anos, quando acabou de pintar a Capela Sistina, muito preocupado com as questões da morte e da salvação. Ele faz, por acaso, nos seus sonetos, uma observação muito parecida com aquela que Nicodemus faz ao interpelar Jesus. Pergunta Nicodemus: "Como pode um homem nascer, sendo velho?" (João 3, 4). Pergunta Miguel Ângelo, no soneto 302: "Como posso achar a Salvação com a morte tão perto e Deus tão longe?"

Miguel Ângelo, que tinha dissecado corpos para os seus estudos utiliza estes últimos para representar o homem, mas não num sentido estrito e absolutamente fiel ao original como Leonardo. Assim, a pele que pende de São Bartolomeu não é uma pele tal como Miguel Ângelo a viu e sentiu (parece a pele de um animal). Mas é isso que interessa o pintor, já que também ele não é perfeito perante Deus.
Miguel Ângelo
Pietà
1550
Museo dell'Opera del Duomo, Florença

O crescimento do auto-retrato prende-se com o crescimento da sociedade. Ao princípio os pintores assinavam as obras para se distinguirem dos simples artesãos . Começa no entanto a existir a necessidade de cada um se promover já que há cada vez mais concorrência, clientes mas importantes e encomendas mais volumosas, para além, curiosamente, de melhores espelhos. Até aqui os auto-retratos dos artistas eram deles enquanto testemunhas de um acontecimento: eram de assistência como este de Masaccio e o de Rafael. Tal não quer dizer que os artistas não tivessem consciência de si, como quis fazer crer Jacob Burckhardt. Segundo ele, os artistas até ao Renascimento não tinham quase identidade; ou seja, não tinham de facto consciência de si, o que não era verdade. Alguns como Masaccio ou Rafael pintavam-se na multidão, outros intervinham mais na cena (Dürer é a grande excepção, é o emancipado), mas todos se pintaram. Antes e depois do Renascimento. Frans Hals estava entre os burgueses de Amesterdão no século XVII, Velázquez aparece na Victory of Breda e Manet (mais tarde) encontra-se entre aqueles que passam uma tarde nas Tulherias... Uns mais comedidos como estes e outros, como Giovanni Bazzi mais ousados. Em St. Benedict's First Miracle, o pintor surge no centro da tela, no centro da composição como se tivesse sido ele a fazer o milagre, talvez para se vingar da forma como os monges beneditinos o receberam durante 3 anos enquanto realizava o quadro, chamando-o de "Il mattaccino" (o buffon). Ou como Caravaggio que se retratou, não à direita de Cristo como costuma acontecer nas cenas bíblicas mais solenes, mas à esquerda, do lado dos soldados. No entanto, é ele quem tem a lanterna, quem ilumina a cena e quem coloca em evidência a revelação.
Masaccio
Raising of the son of Theophillus and St. Peter Enthroned
1426-1427
Capella Brancacci, Santa Maria del Carmine, Florença

Raphael
The School of Athens
1509
Stanza della Segnatura, Vaticano

Velázquez
The Surrender of Breda
1634-1635
Museu do Prado, Madrid

Giovanni Bazzi
Life of St. Benedict
1505-1508
Abbazi, Monteoliveto Maior


Caravaggio
Taking of Christ
1598
National Gallery of Ireland, Dublin

(continua...)

2 Comments:

Blogger João Barbosa said...

o Miguel Ângelo devia ser um tipo complicado, arranjou problemas com uma série de gente... ao que consta

1/9/11 9:49 da manhã  
Blogger Belogue said...

Mas olhe que estava a ver o biopic (fica bem dizer em inglês) do Caravaggio e ele também era um tipo complicado. Eu não sei assim muita coisa, mas o Toulouse Lautrec também era complicado, o Goya, quando alcançou o título de primeiro pintor da corte também era irascível, o Van Gogh... Mas sabe, acho que no geral se romantiza muito os pintores: que eram atormentados, que a arte era sofrida. isso para mim é treta século XIX. Havia-os mais ou menos postos na vida, mais ou menos aptos, uns loucos de uma coisa outros loucos de outra coisa.
o Miguel Ângelo devia saber bem o seu valor e devia ficar fulo quando vinham dar opiniões. Pelo menos imagino-o assim

2/9/11 12:32 da manhã  

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