quarta-feira, agosto 24, 2011

- o carteiro -

desculpem estar a postar isto às pinguinhas, mas lembrei-me que não tinha falado de uma das melhores iniciativas do Manchester International Festival, de seu nome Eleven Rooms. estas exposições de performances, se é que assim lhes podemos chamar, apresentou no espaço da Manchester Art Gallery onze performances, simultâneas, às quais os espectadores assistiam e, em alguns casos, ajudavam. O primeiro quarto era dedicado a Swap, de Roman Ondák. Consistia numa sala praticamente vazia no centro da qual estava uma cadeira e uma mesa. Em cima da mesa encontrava-se um objecto que, segundo o que me lembro, era CD de música clássica. Assim que os visitantes entravam eram recebidos por um actor (acho que lhe podemos chamar isso, pois não era o artista em si que fazia a performance, mas sim vários colaboradores que se iam revezando) que lhes perguntava o que é que nós, visitantes, tínhamos para oferecer em troca do CD. A pessoa que entrou antes de mim trocou com ele um bloco de apontamentos e eu troquei um pacote de bolachas (Maria) pelo bloco, e olhem que o pacote de bolachas era para mim muito importante já que não consigo encontrar em Inglaterra bolachas Maria simples e só como esse tipo de bolachas. Isto também quer dizer que facilmente nos desenvencilhamos dos objectos, mesmo aqueles que têm valor, perante a iminência de algo novo, mesmo que com valor inferior. Depois, e após muitos risos e sorrisos (pois uns ficaram, atendendo ao valor pecuniário dos objectos, a perder, mas atendendo à experiência, a ganhar), seguia-se para a sala seguinte.

Na sala seguinte estava Joan Jonas e o seu Mirror Check, uma performance já de 1970 (e isso é que me aborreceu pois era suposto a coisa ser actual), mas que não era realizada pela própria, pelo menos a avaliar pelas imagens. Uma performer nua - razão para a porta permanecer fechada entre as entradas e saídas - observava-se muito lentamente através de um espelho, mas naturalmente, e por mais que se esforce, esta mulher nunca vai conseguir ver todos os cms de pele. Há duas notas a acrescentar: o fato de a performer em questão ter usado a aliança de casamento e de estar retratado naquele quarto a pessoa, a sua sombra e o seu reflexo. Quanto à aliança, ela diz-nos muito mais de toda a performer, do que qualquer espelho com potência ginecológica, já que nos indica que é casada. (e tudo o que por consequência conseguirmos intuir)

À sala seguinte dedicarei poucas linhas. Era da responsabilidade de Santiago Sierra e dos seusVeterans of the wars of northern Ireland, Afgahanistan and Iraq facing de corner. Consistia na presença, face a um canto da sala e de pé, de um homem de rosto colado à parede que representava vários tempos e várias pessoas. No entanto não permitia a interação, o que nestes casos se revela um pouco autista... não sei, parecia que era necessário estar dentro de um contexto muito especial para perceber. E a verdade é que quem ia ver, não tinha essa informação. Tive vontade de lhe perguntar o que é que ele estava ali a fazer de cara voltada para a parede, mas tive receio que alguém da organização me viesse repreender.

Na sala dedicada a Tino Sehgal a uma pequena menina faz de Ann Lee, nome da performance. A sala encontrava-se vazia nela, no centro, uma rapariga, com cerca de 8, 9 anos declamava um texto que estava relacionado com outra performance (desconheço se era o texto de outra performance) e em que a performer falava, praticamente, sobre si, sobre a sua condição. No fim do texto a menina abandona a sala lentamente deixando-nos com uma pergunta. Ela fala, mas há ali de facto uma diferença entre a interação e a comunicação. Acho que uma senhora ousou responder-lhe, mas a criança não abriu a boca e quem respondeu foi outra pessoa que também estava a ver a preformer. Logo a seguir entrou outra menina que repetiu todo texto e voltou a deixar-nos...

Revolving Door de Allora & Calzadilla foi uma performance engraçada, mas não deixei de me sentir um bocadinho palhaça. No quarto estava uma fila de jovens, vestidos todos de igual, fila essa que ocupava uma parede à outra. Como se tivessem um eixo central a meio da sala, os jovens iam marchando numa direção ou em outra, como uma porta giratória. Claro que quem os via tinha vontade de provocá-los, marchar com eles, girar na direção em que eles giravam ou até, quando faziam ângulo recto, ficar presa entre duas paredes e as duas filas de pessoas. Fiz isso, mas o fato de eles não terem qualquer expressão facial perturbou-me um pouco. Como disse... senti-me palhaça. É que acho que a arte para ser levada a sério não tem de ser macambúzia. Por isso gostei tanto do primeiro quarto onde para além de trocarmos objectos podíamos conversar com o performer acerca dos objectos.

John Baldessari apresentou uma "ejaculação precoce"; ou seja, apresentou aquilo que estava para ser a performance, mas que depois, por motivos óbvios (como veremos) não pôde ser concretizada. A performance chamava-se Unrealised proposal for a cadavre piece e que consistia em apresentar numa exposição um cadáver. Mas, ou não houve o empenho necessário da parte do artista e da organização, ou por falta de tempo, ou até por imposições legais, não foi possível trazer o cadáver para a exposição a tempo da mesma. O que é que ocupa então o quarto? O conjunto de emails trocados entre as diferentes partes e que falavam, por um lado, da tentativa de aproximação desta performance com o quadro de Cristo Morto de Mantegna e a instalação Étant Donnés de Duchamp, também referiam os aspectos mais práticos da ideia. Daí a presença de emails trocados com funerárias, médicos, advogados. Eram muitos os papéis e era muito difícil ler tudo o que estava lá escrito. Mas era possível uma pessoa aperceber-se, eu pelo menos fiquei com essa impressão que existiram dois impedimentos que mataram o projecto à partida: um foi o célebre laissez faire, laissez passer (o excesso de diplomacia que a isso incentiva) e o outro foi a ausência de tempo para apresentar o projecto do dia da inauguração. Honestamente, achei que aquilo foi mais uma operação de marketing, uma forma do artista se publicitar, apresentando nada, mas com a promessa que poderia - caso ele quisesse - apresentar tudo. Muito barulho para nada, como diria o Shakespeare.

O quarto com a performance Men=flesh/Woman=flesh-FLAT de Laura Lima é talvez o menos interessante. Desculpem lá dizer isto, mas é a minha opinião. O teto do quarto é rebaixado até ficar a cerca de 50 cm do chão. Lá dentro, deitada junto a um candeeiro está a performer que quando fui ver, era anã. Não sei se todos os actores que utilizados naquele quarto eram anões, mas acho que faz todo o sentido se forem. De qualquer forma, e mesmo tendo em atenção que a artista gosta de explorar as relações do corpo humano com o espaço envolvente, não achei propriamente que a performance levantava questões muito relevantes ou que era passível de nos deter. O máximo que me passou pela cabeça foi entrar lá dentro a rastejar e ir ter com ela, mas eu sabia lá se podia fazer isso?. Estive deitada à entrada, à espera de qualquer coisa.

Num outro quarto, um homem nu, deitado numa cama, lê um livro em voz alta. É a base da performance de Simon Fujiwara: Playing the martyr. O livro que o actor lê chama-se "As vidas de Simão". Durante esse tempo ele distrai-se, masturba-se, pensa em voz alta em outras coisas e faz aquilo que não é suposto um actor fazer: falhar a representação. Chamaram-me também a atenção para outra coisa. O actor, que não é Simon Fujiwara, tenta - até pelo nome da performance - fazer de conta que é um mártir. Ora o mártir São Simão está morto, o que quer dizer que também nisso o actor falha, já que não está morto. Se estivesse não poderia ser actor. (Uma ideia que me veio agora à cabeça é que o actor talvez pudesse de facto estar morto e ser actor, como acontecia no caso de John Baldessari. Acho que o trabalho de actor não pode ser visto como a memorização e verbalização de um texto, ou por qualquer actividade física. Se assim fosse, um actor que fizesse de morto não era actor).

Lucy Raven, que é a autora, mas não a actriz, a performer, apresentou What Manchester does today, the rest of the world does tomorrow, na qual se pode entrar de x em x tempo. Lá dentro os observadores sentam-se em dois bancos corridos dispostos na sala, frente a um piano que toca com discos marcados. Não sei como isso se chama, mas é quase o mesmo sistema do realejo. Quem faz a performance não é o performer, mas sim o piano. Daí dizer-se que é uma antevisão do futuro, de como será o futuro em que as máquinas substituirão os homens. Pois eu cá não sei, desconfio muito disso, mesmo para fazer a máquina é necessário o homem. A não ser que a máquina seja feita pela máquina, mas na génese, foi o homem. Talvez seja antiquada, mas não sei se iremos de facto, no futuro, sentar numa sala de espetáculos e olhar para um piano que toca sozinho.

Seguiu-se a performance que justifica todas as outras: Marina Abramovic. Digo-o com ironia pois de senti que todo este festival rodava em torno dela, o que, avaliando pela sua performance e pelo espectáculo de que já falei aqui The life and death of Marina Abramovic, não augura nada de bom. Quer dizer, vamos lá ver se a gente se entende: acho que o trabalho dela, mesmo aquele que ela apresentou na galeria, foi sobrevalorizado. As pessoas parecia que hiperventilavam quando estavam a chegar à entrada do 10º quarto da exposição, quando na realidade ela não mostrou mais do que aquilo que já tinha mostrado. A performance chamava-se Luminosity. Dentro de um quarto escuro, com apenas uma parede iluminada por um foco, uma rapariga nua de braços e pernas abertas, sentada numa plataforma fixa à parede e com os pés apoiados em outras duas, quase como crucificada, permanecia ali até aguentar. Quando ela descia para dar lugar a outra performer dava para ver como o rabiosque estava vermelho e marcado. Não sei se a ideia era mostrar uma mártir ou o martírio em directo já que a posição dela era muito semelhante à de Cristo. E nisto já de fato alguma coisa da tal luminosidade de que fala o título que talvez se deva a uma espécie de epifania. É que a rapariga adota não só a postura de Cristo, como a do Homem Vitruviano de Da Vinci, como também tem qualquer coisa de Hermann Nitsch.

Por fim (ah... o por.fim), isto seguindo mais ou menos a ordem que segui lá a exposição encerra com Xu Zhen e In just a blink of an eye. Vamos lá ver se consigo explicar. Aquilo que vi não vai de encontro ao que li. In just a blink of an eye é não só a performance que vi, mas um conjunto delas que se caracterizam por mostrar pessoas (dizem que são pessoas chamadas por serem da China e encontrarem-se a trabalhar em Nova Iorque) em posições improváveis que desafiam as leis da gravidade e da lógica. Não é magia, é apenas o apoio do corpo numa superfície de metal que fica encoberta com as roupas. Ora em algumas outras performances sob esta denominação de In just a blink... faz de facto sentido aludir ao facto de serem trabalhadores chineses que estão sempre em suspenso, sempre à espera que o seu emprego caia (porque é que sinto que este conceito se podia exportar), até porque usam o tradicional fato azul de operário. Mas nesta performance, o rapaz - de joelhos dobrados e costas paralelas ao chão - usava um casaco desportivo, ténis e jeans. Não me pareceu de quem estivesse suspendo à espera de uma tragédia laboral.

E assim aconteceu. Despeço-me com amizade...