segunda-feira, abril 11, 2011

- o carteiro -

[trabalho de História da Arte e Cultura da Época Medieval sobre os gestos na pintura de Giotto]

Se Murnau fosse um cineasta, não dos idos anos 30, mas sim da actualidade, seria Aurora considerado um dos filmes mais belos de sempre? Iria o som acrescentar, em eloquência, algo ao enredo ou ao nosso entendimento? Iria por conseguinte torná-lo ainda mais belo? Tememos que a resposta seja negativa. Razão: a eloquência está tanto nos gestos como a destruição das grandes cidades bíblicas (Babel e Jericó) esteve no som. Da mesma forma, quando nascemos, não dotados de uma fala inteligível, expressamo-nos pelos gestos. E já quando dotados de capacidade verbal nunca preterimos os gestos em favor da expressão oral talvez porque a linguagem dos gestos é universal, intemporal e transversal. Um exemplo desta importância e abrangência do gesto encontra-se nas pinturas de Giotto (1267-1337), ainda que para os mais desatentos ela surja aos seus olhos apenas como repositório de cores, formas e volumes. Esta obra é mais do que isso: é também a compilação de um conjunto de gestos ilustrativos de uma época que, para além de permitirem uma leitura dos frescos do artista mais profunda do que a retirada através de uma observação fortuita, permitem igualmente estabelecer relações entre as personagens.

Oração - As mãos postas em oração surgem em vários frescos de Giotto e de formas que variam entre si, necessitando por isso de uma observação mais atenta. Para nós hoje, as mãos que oram são mãos esticadas e juntas, palma com palma. Se possível, elevadas até ao queixo ou junto da boca. No entanto nem sempre esta configuração das mãos foi o gesto paradigmático da oração já que vamos encontrar, antes do século XIII (ou seja, antes sequer do nascimento de Giotto) a presença de outro gesto de oração no Antigo Testamento (Isaías 1, 15: “Por isso, quando estendeis as vossas mãos, escondo de vós os meus olhos; e ainda que multipliqueis as vossas orações, não as ouvirei, porque as vossas mãos estão cheias de sangue.”) no Novo (1º Timóteo 2, 8: “Quero, pois, que os homens orem em todo o lugar, levantando mãos santas, sem ira nem contenda.”) e para além disso em representações da Antiguidade. No Antigo Egipto em estela funerária mostra este gesto e em Roma, a imagem da Piedade era semelhante à da Orans cristã.

Estela Funerária

Antigo Egipto

Pietas romana

Manuscritos de Dresden (Sachsenspiegel)

Giotto Scenes from the Life of St John the Evangelist: 2. Raising of Drusiana 1320 Peruzzi Chapel, Florença

A imagem a que nos referimos é a orans – a de oração com as mãos elevadas em direcção ao céu – que não é no entanto a preferida, na maior parte dos casos, por Giotto. Ao observarmos o fresco d’A ressurreição de Drusiana vemos que no lado esquerdo do mesmo uma personagem de veste laranja, atrás de uma outra aureolada, junta as mãos em oração à altura do queixo, enquanto olha para o céu. Este foi o gesto que no século XII substituiu o antigo gesto de oração. O que o mesmo representa prende-se com aquilo a que estava associado; ou seja, aos momentos em que a representação do mesmo é aplicada. Surge de forma inequívoca na Antiguidade. Tal como referia o escritor Heliodoro, esta era a fórmula usada para descrever a submissão dos presos e cativos vencidos aquando da sua prisão: tinham de unir as mãos para estas serem atadas. Esta fórmula também está presente no túmulo de Henrique II, o Leão, e da sua filha Matilde já que esta apresenta as mãos unidas junto ao peito como se estivesse em oração. Note-se que a obra é de cerca de 1240. Vemo-la igualmente nas ilustrações do Sachsenspiegel (livro de leis germânicas da Idade Média que regulamentava, através de ilustrações, os diferentes ritos no que concernia ao casamento, ao direito de propriedade, à distribuição de leis, etc.) Numa dessas ilustrações a relação feudal está representada por um vassalo que coloca as suas mãos juntas entre as do seu senhor. Com isto ele dizia que se submetia à protecção do senhor e que confiava neste. Na vida como na arte, o gesto que a personagem de Giotto faz é também uma forma de submissão e aceitação dessa submissão face a Deus. Porém o que Giotto faz não é apenas aplicar uma fórmula estanque; ele acompanha-a de um expressão emocional forte, o que nos mostra que para o autor, o gesto não substitui a expressão facial, mas esta acompanha-o. Por exemplo, n’A Ascensão de Cristo, Giotto divide o espaço em dois através dos gestos dos intervenientes: em cima, no mundo celeste predomina o antigo ritual da oração com as mãos elevadas para o céu. Em baixo, a maior parte das figuras ora com as mãos junto ao queixo ou à boca. Maria, em baixo à esquerda parece-nos a mais emocionada, embora não descontrolada: o seu olhar dirige-se para o filho que ascende, a boca está levemente entreaberta e imaginamos a mãe de Cristo a rezar embora contida. O mesmo não acontece com outras obras de Giotto (A crucificação, O milagre da fonte) onde as personagens em desespero misturam o antigo e o novo gesto originando assim outros.

3 Comments:

Blogger alma said...

Ai, Giotto, Giotto ...
Durante algum tempo Giotto (foi um dos meus heróis )
não conhecia a Aurora do Murnau.

Querida Beluga,
muito obrigada pela excelente qualidade dos seus trabalhos
se aqui é assim
imagino o que será nas aulas
um grande abraço

12/4/11 10:40 da tarde  
Blogger AM said...

já leu o tudo o que você devia saber sobre a linguagem gestual (ou algo de muito parecido) de um dos primeiros livros (aqueles com as primeiras crónicas para o expresso) do miguel esteves cardoso?
é bem divertido

16/4/11 6:11 da tarde  
Blogger Belogue said...

Cara Alma:nas aulas meto os pés pelas mãos, mas parece que a professora gosta de alunos "com capacidade crítica" (ficou muito ofendida por eu dizer que não concordava com algumas coisas do Moshe Barasch)

Caro AM:
não, não li. mas se tivesse, gostaria muito de lho pedir emprestado para ler. Espero que não seja análise dos gestos do sexo masculino e feminino.

26/4/11 10:10 da tarde  

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