terça-feira, fevereiro 23, 2010

- o carteiro -
Os posts não têm sido nem muitos, nem bons, mas não tenho tido tempo e quando tenho tempo desperdiço-o a pensar se valerá a pena postar quando não se tem nada de relevante a mostrar. Num desses momentos lembrei-me que ainda faltava mostrar-vos umas curiosidades sobre o livro/conto de Heinrich Von Kleist, “Michael Kohlhase, o Rebelde”. Li-o porque uma vez me falaram nele e nas diferentes viagens que a personagem faz ao longo da história e é de facto impressionante como num curto conto, Kleist nos faz mudar de repente de visão sobre cada um dos envolvidos. Sabendo que nunca repito livros, voltar a ler o mesmo conto sem me desinteressar é para mim um feito que gostaria de partilhar com vocês. Porquê? Não sei bem, só sei que sabe bem. O conto (coisa para duas horas de leitura, mais ou menos) é sobre uma história real que teve lugar na Saxónia do século XVI. Nessa época e tempo um jovem mercador de seu nome Hans Kohlhase que vivia em Colónia perto do Spree. Em 1532 este mercador desloca-se com os seus cavalos até Leipzig, a uma feira quando é mandado parar. Os seus cavalos são confiscados para pagar um imposto de passagem pela Saxónia, imposto este que não existia e que foi inventado na altura pelo fidalgo von Zaschwitz. Quando sabe, Kohlhase procura que se faça justiça pelos meios legais, mas vendo-se, por um conjunto de tristes circunstâncias constantemente injustiçado e mal tratado, acaba por enveredar pela via contrária. Em 1534 torna pública uma carta onde dá a conhecer as suas intenções de destruir todos os que se lhe oponham e aqueles que protegerem o senhor. Assim, e numa sede cega de vingança, começa a incendiar casas e junta um pequeno grupo de homens, mais mercenários e carniceiros que justiceiros que com ele levam a cabo a destruição. Não obstante uma carta de admoestação de Martinho Lutero, Kohlhase estava cego e convencido que, se não havia alcançado justiça junto dos tribunais, tinha de fazê-lo pelos seus próprios meios, nem que para isso fosse necessário ser injusto. Com todos os seus actos acaba condenado à morte pois os seus crimes tornaram-se mais gravosos que aqueles pelos quais queria que outros pagassem.



Apesar de pouco conhecido, este conto de Kleist é tão importante para a literatura germânica como o Fausto de Goethe o foi na sua época. São os dois pilares fundamentais (que cliché, burra) da literatura alemã. E porque é que o é? Por um lado porque nos leva num curto espaço a sentirmo-nos, tal como o mercador, injustiçados e depois, revoltos. Identificamo-nos como o mercador de Kleist, mesmo sabendo que o que ele faz para obter justiça já é em si injusto e está fora de todo o resquício civilizacional. Por outro lado, porque não obstante Kleist fazer constar que apreciava os homens e mulheres que lutavam pelas suas causas sem baixar os braços, ele próprio baixou os braços (segundo algumas interpretações. Para mim o suicídio é uma questão pessoal) e suicidou-se juntamente com uma amiga. Na época a história – à qual foram acrescentados os pormenores necessários – não foi muito apreciada e só postumamente, como geralmente acontece, recebeu o verdadeiro apreço da crítica. A história de Kohlhase mostra o empenho de um homem na busca pela justiça dentro do corrompido sistema legal saxão e Kleist serve-se dela, da história, para mostrar as suas opiniões sobre a política do seu tempo e para denunciar o que estava mal a este nível. Nesta altura o eleitorado da Saxónia estava descontente com o seu eleitor pois após desmembrado o Sacro Império Romano Germânico a Saxónia passou de membro com estatuto especial e despojado por Napoleão.



Este conto é uma parábola da justiça da época que hoje continua activa. Kohlhase começa por ser um homem sem justiça: recorre aos tribunais, recorre ao príncipe e ninguém lhe dá razão quando sabemos, porque nos identificamos com ele (Kleist é muito esclarecedor e quase minimal pois não conta a história de forma dúbia), que Kohlhase tem razão. A sua acção na justiça fica durante um ano perdida nos tribunais legais e perante isto o mercador começa, progressivamente a mudar a sua acção, quase sem por isso darmos conta. Primeiro emite editais em que repudia todos os que protegem o barão Von Tronka (a versão no conto para aquilo que na realidade era o Senhor von Zaschwitz). Mas estas declarações escritas pelo mercador, não obstante serem baseadas em pressupostos justos, obrigam os outros cidadãos a agir conforme os seus desejos, algo que em si não é muito justo. Claro que as burocracias legais muito contribuíram para que Kohlhase tivesse uma conduta reprovável, mas nem tudo nele é fruto da injustiça. Às tantas, aquando principalmente do seu encontro com Martinho Lutero (Kleist contextualiza a proclamação de Lutero através de uma conversa em mercador e reformador), Kohlhase mostra que já não pretende justiça; ele não quer os seus cavalos de volta nutridos nem a sua indemnização, ele quer a punição do Barão. O direito à justiça que Kohlhase extorquiu aos outros através da sua conduta violenta, que Kleist mostra em crescendo, fica anulado quando, finalmente concedido por Lutero, o mercador reclama mais, e mais importante do que o que lhe é devido é aquilo que não é devido aos outros. Tal como o capitão de Moby Dick que sabe que nunca vai recuperar a perna no estômago da baleia (“mas o que é que ele está a fazer naquela barbatana?”, diria eu reinventando o Harpagon de Moliére) quer apenas matar a baleia, Kohlhase quer aniquilar o barão, mesmo sabendo que nada devolverá a vida da sua mulher, que morreu tentando lutar por aquilo que era do marido, nem a sua paz familiar, nem a saúde dos seus cavalos, nem o apreço dos seus amigos e da comunidade, nem a fidelidade dos seus servos. O mercador quer destruir aquilo com que não se identifica e aquilo com que não se identifica é todo um conjunto de pessoas e ideias que outrora defendeu, mas contra as quais agora luta por lhe parecer que formam conluio contra ele. Mesmo quando avisado para ponderar, o justiceiro mostra-se irredutível e assim passamos, de forma muito natural de um homem justo, para um executante. Kohlhase a quem a justiça não serve, serve-se da injustiça, uma vez que a mesma justiça que não pôde ou não quis defendê-lo armou-o para ele se defender e ofender. Ele é um homem, primeiro injustiçado e depois, porque toda a revolta cresceu à sua revelia (o mercador reúne um pequeno exército que pretende apenas pilhar enquanto ele pretende que se lhe faça justiça), incapaz de remendar as suas injustiças, injustiças estas, diga-se em abono da verdade, que são mais fruto do seu sentimento de perseguição e de pressão exterior. O mesmo grupo que o maltratou é aquele que se defende dele segundo normas gerais de convivência em sociedade. Mesmo na penúria, a caminho da morte por enforcamento, o mercador mantém as suas convicções. O final é um triunfo porque para Kohlhase já não haveria restituição possível no mundo dos vivos, mas estes vivos que o vêem morrer, exultam. Por outro lado, é através de uma morte em paz e fiel aos seus princípios que Kohlhase encontra a justiça que procurava.




Acho que á nesta história uma particularidade muito actual: a justiça continua a abrir caminhos de injustiça, uma vez que é lenta, falha e cria mecanismos subversivos devido às suas inúmeras interpretações e constantes alterações. Na busca cega de uma justiça mais justa, a justiça torna-se incipiente, sem princípios, básico e volúvel.

3 Comments:

Blogger alma said...

Beluga,
"...,o Rebelde" tenho de o ler.
Os seus posts são sempre de uma enorme qualidade :)
(guarde a sua humildade numa gaveta)

27/2/10 6:24 da tarde  
Blogger Belogue said...

Cara Alma:
Vou escrever uma coisa pouco humilde, mas a minha humildade não cabe numa gaveta. às vezes até me irrita (eu sei, isto não parece nada humilde, mas é pelo menos sincero).
Tem de ler o livro. Ninguém dá, aparentemente nada por ele, mas a nossa cabeça acompanha sempre o justiceiro, mesmo quando ele leva a justiça ao limite.

28/2/10 11:35 da tarde  
Blogger Belogue said...

e é muito actual. diz basicamente isto: quem não me dá a justiça, dá-me as armas para combater.

28/2/10 11:36 da tarde  

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