segunda-feira, fevereiro 15, 2010

- o carteiro -



Van Gogh
Fifteen Sunflowers in a Vase
1888
National Gallery, Londres

Quando a minha idade era outra que não esta achava que com esta idade seria uma estilista famosa, sem filhos e muitos namorados. Nada mais errado. Era uma altura em que para mim a moda devia ser “efémera” palavra que repetia até à exaustão por me parecer um sinónimo de eterna. Era também a altura em que dar recados por telefone não podia ser tarefa mais ridícula uma vez que, segundo a minha cabeça, um recado era uma coisa escrita. Prostrava-me horas a pensar que seria necessário cortar o papel em pedaços muito pequenos que passassem nos furos do bocal do telefone e que depois era necessário soprar. Do outro lado a pessoa que recebesse o recado teria de colar as partes e isso era mais trabalhoso do que enviar o recado pelo correio. Eu pensava que as pessoas que morriam nos filmes eram pessoas que tinham respondido a um anúncio num jornal anúncio esse elaborado mais ou menos nestes termos: “Precisamos de pessoas que desejem morrer em filme de acção”. E as pessoas lá iam. E o Mário Soares? O Mário Soares não defecava – na altura dizia “não faz cocó” porque não aplicava o “efémero” (termo polivalente) à conversa escatológica. Para mim, uma pessoa importante como o Presidente da República não podia defecar.

Não cheguei a Coco Chanel porque entretanto vi que Lisboa não era Paris. E porque não queria ser uma estilista de catálogos. Queria ser grande. E era boa no desenho de roupa. Queria ter sido ginasta, cavaleira e ganhar provas de hipismo, cozinheira de bolos de muitos andares, historiadora de arte, arqueóloga, escritora, actriz nos anos 50, pseudo cantora no Cotton Club, e stripper no Crazy Horse. Modelo só para saber o que é ser muito, mas mesmo muito bonita. Nunca pensei em bebés e ainda continuo a não pensar talvez porque acho que não os posso ter. Quanto aos namorados, nunca os tive, a não ser quando brincava às Barbies com a Bárbara e a minha Barbie era sempre a ninfomaníaca: ela “fazia o amor” com o Ken na piscina da Barbie, na cama cor-de-rosa da Barbie, na prateleira da casinha das bonecas de casa da Bárbara, na gaveta quando a brincadeira chegava ao fim… Era uma doida. Engravidava sempre, mas não fazia abortos porque nós desconhecíamos tal prática: a minha boneca perdia sempre a criança como acontecia nas telenovelas que eu e a Bárbara acompanhávamos religiosamente e às quais reservávamos os comentários mais jocosos sempre que víamos o mamilo da Maitê Proença. De manhã eu e a Bárbara fazíamos a casa das Barbies e depois do almoço resolvíamos a vida das cachopas. Cansávamo-nos e íamos andar de baloiço e fazer saltos no ar, a ver quem caía mais longe na relva. Andávamos de patins, comíamos tartes de nata e Fizz de limão, olhávamos para a caderneta do Roque Santeiro (que a minha mãe nunca me comprou apesar dos meus pedidos insistentes porque lá em casa estávamos em constante contenção de gastos) e íamos ao quarto da mãe da Bárbara cheirar os perfumes, os cremes e admirar um vestido Valentino que ela tinha no gigantesco guarda-fatos. A Bárbara tocava piano antes do jantar anunciado pela empregada. Tomávamos banho com Taithi cor-de-rosa (embalagem paralelepipédica), ouvíamos o disco do Fido Dido e descíamos as escadas para algo bem mais criativo que a farinha de pau da minha mãe ou a faneca frita. O passo último deste inebriamento era a visão triunfal de uma mesa em que, ao contrário de tudo aquilo que eu já tinha visto, os pratos combinavam e os talheres eram todos iguais. Era como estar num episódio da Dinastia, mas não a servir à mesa

Hoje a minha vida não podia ser mais diferente que a da Barbie-dominatrix a quem dava voz e movimento nas perninhas anatomicamente improváveis e a Bárbara já não mora na casa de série televisiva. Já não comemos Fizz porque devem tê-lo retirado do mercado já que, gelado sim, gelado não, o Fizz limão vinha estragado. A minha massa adiposa diminuiu para o mesmo nível daqueles idos anos. Acabaram-se os amores de telenovela e os verdadeiros nunca existiram. Foi-se a moda, mas ficou o gosto e a certeza que, seja qual for a minha idade, eu ainda hei-de ser como o projectado numa tarde de Verão passada na brincadeira lasciva de um pedaço de plástico modelado, com olhos e cabelo loiro. Bem sei que parece tristemente ridículo, mas eu sinto-me a mesma e não mudaria nem o conteúdo, nem o contentor.

6 Comments:

Anonymous ana said...

e isso é tão bom...

15/2/10 11:46 da manhã  
Anonymous Filipe M. said...

não consegui falar contigo. parabéns

16/2/10 6:35 da tarde  
Blogger João Barbosa said...

a vida faz de nós coisas que nunca pensamos da vida. parabéns. amanhã mando-lhe um beijinho atrasado

17/2/10 1:51 da manhã  
Blogger Belogue said...

É ridículo, mas é melhor do que viver a desejar ser uma coisa que não se pode ser. Às vezes entro nas lojas só para ver como as raparigas que lá trabalham são bonitas e como nunca lhes vou dar pelos calcanhares. E martirizo-me. Sabes que reparei porque é que me custa sair: porque tenho medo que as pessoas descubram que não sou aquilo que elas pensam, que não sou alta nem fantástica, que sou insegura, que ataco para me defender e que não quero lamechices. Se calhar é por isso que tenho um blog; no facebook é quase preciso dar a cara. E eu fico tão mal nas fotografias. E a outra razão para escrever isto tudo aqui é porque sei que na net, nos blogs e no geral (pelo menos entendo assim) as pessoas vivem tão sedentas de coisas novas que tenho a certeza que ninguém vai ler o comentário aos comentários. Assim uma parte inconfessável (mas notória) de mim pode ficar aqui para sempre, perdida no lixo virtual que ninguém vai dar por nada. É como enviar uma mensagem para o espaço.

21/2/10 11:27 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Adorei ler-te.
RA

22/2/10 1:32 da tarde  
Blogger Belogue said...

RA:
Ooops. Meti o pé na poça que é como quem diz, meti o comentário na caixa.

23/2/10 12:07 da manhã  

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