terça-feira, janeiro 05, 2010

- o carteiro -


Van Gogh
Fifteen Sunflowers in a Vase
1888
National Gallery, Londres


Quando a minha idade era outra que não esta, o meu bisavô, que Deus Nosso Senhor levou no ano da graça de mil novecentos e carqueja, e no seu seio o conservou para evitar estragos irreparáveis, pousou a mão experiente e traquejada no alvo ombro da minha estimada bisavó e sem demoras, complacências ou desagravos posteriores depositou no silêncio familiar da sala o dito seguinte:
“Vamos morar para Espinho, junto ao mar”. O meu bisavô voltava de mais um dos seus périplos laborais como maquinista da CP o que lhe permitia um conjunto de regalos da carne e do espírito, alguns conhecidos outros não. À frente na máquina conduzia os destinos dos passageiros adormecidos com os bilhetes embolsados, sandes de torresmos e tachinhos de batatas solteiras, que se aventuravam pelo país em busca de companhia para as ditas a partir de Vila Nova da Barquinha. O meu bisavô, que Nosso Senhor conserve sempre assim como nunca lembro pois não tive o prazer de com ele privar, houvera passado por Espinho e teria achado algum encanto à vivência junto ao mar e talvez relativizado o cheiro da maré baixa junto às pedras do paredão onde os mariscos botavam crescedura. Minha bisavó chorou: dois filhos deitados ao Mundo, vida posta na cidade, amigos, a rotina habituada, a vidinha da Igreja, os nomes e as visões… tudo isso em troca do mar sargacento de Espinho, como ela achava que iria ser. Já se imaginava Ofélia marafona a flutuar sem sopro de vida numa pequena poça de mar fora dos roteiros infantis, com a bênção de Cristo que muito penou e que não deixaria tal mulher sofrer tamanha dor, ela que sempre lhe limpou os pés da imagem pascal e que lhe ruminava um rosário diário enquanto desfiava as malhas do tricot…

Meu avô, de egrégia graça Afonso, foi instruído no mester de seu pai, que era carinhosamente tratado por “paizinho”, trabalhando de sol a sol nos caminhos de ferro portugueses, trabalho que só largou quando um dia, por obrigação governamental, teve de ceder lugar aos inexperientes face à inevitabilidade de algo chamado aposentação, que ele abominou até ao doloroso fim dos seus dias rematados por um cancro que lhe levou próstata, intestino e dignidade. A divisa aeróstata foi tomada como um insulto pela família dos “do ourives” (nome pelo qual era conhecida a família de minha bisavó, avó e mãe, até ao aparecimento das lojas de bijuterias), pois afinal o ofício carecia de experiência e muita preparação verbal somente dada com verdade de um pai para um filho. Tal como disse um dia a minha bisavó quando a minha mãe a confrontou com a chegada do Homem à Lua: “Ai menina, eles que brinquem lá em cima que um dia avariam tudo”. Conhecedora embora na ignorância do seu saber, minha bisavó, tratada pela família como “avozinha”, à semelhança das personagens masculinas de Dostoievsky, marcava assim o destino dos homens faltosos para com o devido respeito às normas sabiamente instituídas desde tempos imemoriais.

Os haveres foram empacotados e cambiados para a salgada morada salpicada pelo rebentar das ondas junto aos palheiros. Meu avô pôs-se homem entre as suas idas e vindas ferroviárias e nos entremeios travou conhecimento com minha avô, uma senhora de carnes protuberantes que passou a desenhar jóias para os “do ourives” até que a maternidade e a obesidade lhe tivessem levado a vontade de se dedicar à imaginação, optando assim por uma existência mais doméstica mas nem por isso mais pacífica. Botou ao mundo dez filhos e entre os paridos, seis morreram para deixar espaço no Mundo à primogénita dos sobreviventes: minha mãe. Minha avó desmultiplicava-se em várias aias imaginadas para manter a descendência nutrida, sadia, obedecida e crescida rapidamente como porcos que se querem engordados e prontos a deixar de fazer despesa em casa do carrasco. O tempo havia-lhe moldado as carnes moles e quentes em músculo duro e ao cabo de uns pares de anos, aquilo que era doçura e languidez transformou-se em ordem, rispidez e uma certa tendência para a autoridade em doses sobrenaturais, autoridade essa que se traduzia pelo acentuar de uma ruga que lhe descia da aba do nariz bárbaro até ao lábio superior e que se afundava sempre que mostrava desagrado com o asseio do lar, a pauta escolar da eterna infância que trazia atracada às saias e ao destino e a ausência de meu avô preocupado com a lide das máquinas e os horários e os passageiros e o arranjo da linha e o salário emagrecido face à iminência das tecnologias. As do ourives deixaram o labor mercê de um primo que à guisa de uma dívida de jogo foi depauperando o tesouro familiar até o deixar chupado como um maracujá engavetado.

Minha mãe que nessa altura da vida era perfeitamente dispensável por minha avó uma vez que dava despesa e não houvera atingido a idade de andar à jorna e adivinhando-se entre as duas fêmeas um duelo de malfeitorias pelo estranho e inexplicável efeito “Bispo de Fell” foi recambiada para casa de minha bisavó o que se diga, em prol de uma prosa que faça justiça às partes, o melhor que poderia ter acontecido às mesmas. Pela primeira vez na sua ainda curta vida, minha mãe recebia os calores e as ternuras de um beijo voluntário, de um agrado do corpo, de uma satisfação dos desejos que minha avó lhe negara por maldade para com aquela que era o rosto da sua obrigação de parideira ou talvez por incapacidade de lida com a sua meninice. O rosto de minha bisavó confunde-se com a imagem da sua generosidade e da generosidade de meu bisavô. Este trazia das suas viagens às duas senhoras da casa marmelada em cubinhos, bolachas recheadas, pelica, sapatos com sola de couro, bacalhaus e outras mordomias que só dois tipos de pessoas poderiam adquirir; os contrabandistas e os membros ilustres da sociedade. Meu bisavô não se encontrava em nenhuma das categorias, mas fazia com prazer o gosto à lambarice da criança e da bela esposa, que lá isso, minha bisavó sempre foi mesmo nas rugas e maleitas e desabafos do corpo que a levaram. Partiu em Paz e com a certeza que não sendo exactamente um exemplo de santidade pela sua mortalidade, era aquilo que hoje se pode aproximar de uma personagem divina em toda a sua beleza. Deixou a minha mãe a recordação de uma travessa de arroz doce que fazia invariavelmente no dia dos seus anos e bordava a canela com as iniciais M.R., em homenagem à aniversariante.

Minha mãe conheceu as amarguras do regresso ao lar materno, aos seus irmãos quase desconhecidos, à obrigatoriedade da partilha do espaço, da poupança da luz, dos rigores nas brincadeiras. Fez-se mulher com desgostos vários como o incentivo de minha avó para que sem fim nem meio fosse castigada pelo respirar e no medo constante de ser tomada como faltosa no meio de tanta virtude aparente de que mais tarde ficou a conhecer a verdadeira face: minha avó conservava – e conserva à data em que me encontro a propalar este rosário – uma tendência para o rigor com receio que a sua verdadeira tendência para o hedonismo fosse descoberta e dela brotasse o desrespeito de que julgava merecedora. Por isso, nos anos finais em que ainda conservava alguma clareza verbal, afastava os amigos e recebia de braços abertos os que não lhe conheciam os vícios.

4 Comments:

Blogger alma said...

Beluga,

LINDO!

Bem haja :)

6/1/10 11:51 da tarde  
Blogger Belogue said...

Cara Alma:
Obrigada (até tô sem jéito!)
A realidade às vezes é melhor do que a ficção.

8/1/10 12:00 da manhã  
Blogger João Barbosa said...

belíssimo!!!!!

9/1/10 4:18 da tarde  
Blogger Belogue said...

Obrigada João barbosa. Não sei se é belo, mas que é verdade, lá isso é. Ou pelo menos, foi.

11/1/10 12:11 da manhã  

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