quinta-feira, outubro 08, 2009

- o carteiro -
quando um não quer, dois não pecam - procriação III ou a mulheró-poedeira

Um dia, Jan Swammerdam levou até um convívio com os amigos onde se discutia embriologia um bicho-da-seda. Ninguém acreditava que daquele casulo pudesse sair uma borboleta, mas Jan começou a retirar as camadas que envolviam a borboleta e pôs a descoberto todas as partes que constituem esse insecto. O que se concluiu no convívio? Que cada uma das criaturas que existe ou virá a existir no mundo já está preformada dentro das criaturas mãe da mesma espécie. È este o princípio da Pré-formação que fala de um homúnculo, igual ao que virá sair, com todas as características que lhe iremos conhecer e completamente formado que apenas fermenta na barriga da progenitora. É uma outra abordagem à Teoria do Homúnculo em que o ventre materno mais não é que um suporte a algo que se desenvolve independentemente do exterior. Isto dizia que o ser humano era limitado apenas por factores genéticos e que nada de exterior poderia ter influência sobre o seu nascimento nem sobre o resultado final dessa incubação, pois toda a parte ideológica do ser já estava formada. Diz-se que esta teoria foi muito apoiada pela Igreja como forma de combater o Ateísmo. Ao dar a Deus o papel de criador matemático de tudo (as crianças com deficiência eram um aviso da fúria divina e confirmavam a regra), não se podia colocá-lo em causa, problematizá-lo. As crianças que nasceram na altura em que os paizinhos acreditavam nisto sofreram portanto um tratamento muito frio e desmaiado adulto pois todos partiam do princípio que a criança tinha as mesmas faculdades que o adulto, apenas não tinha tamanho. O contrário da Pré-Formação é a Epigénese que diz algo diferente. Diz que no interior do ventre materno se encontra um ser em desenvolvimento, tanto físico como genético e que nada nele é definitivo. O resultado final é fruto da genética, mas também das condições a que foi sujeito durante o seu desenvolvimento. Assim, a genética é apenas uma indicação de que o indivíduo poderá vir a gostar de comer x ou y, mas no fundo, só a experiência é que pode dizer que ele vai comer um em detrimento do outro.
Obviamente, entre a Epigénese e o Pré-formismo, ganha a Epigénese, uma vez que até por comparação com os animais, os seres humanos nascem em estados ainda pouco avançados. Os animais quando nascem começam a andar no próprio, o que não acontece com os humanos. Somos, desde o início, inacabados.
Dentro do Pré-formismo, que é o que me interessa mais porque a Epigénese é o que já sabemos e sobre o que já sabemos, embora não seja conhecimento estanque, alguém se encarregará de nos dizer mais temos duas teorias: a teoria do Ovismo e do Animalculismo. A teoria do Ovismo defende que o embrião está dentro do óvulo, dentro do gâmeta feminino, e a missão do espermatozóide é estimular o desenvolvimento do mesmo. Isto até nem é de todo mentira, pois numa última análise, todos nós existimos dentro do óvulo até nos formarmos com cromossomas XX ou XY. No início somos todos informes. Claro que não é o espermatozóide que nos dá o género com que nascemos, mas esta teoria faz justiça ao sexo feminino quando o sexo masculino se assume como predominante.
O Animalculismo ou Espermismo apoia quase o contrário: quem detém o embrião é o espermatozóide e quando este chega ao óvulo e o deposita, o óvulo mais não é que um receptáculo, um cacifo a 35º, mais coisa menos coisa. Os espermistas não sabiam se o sémen era suor leite, saliva, sangue ou até um bicho ou vários bichos. Daí o nome de Animaculismo, uma ideia que era muito atraente para os mais imaginativos. Para os espermistas, que defendiam que o esperma era um pan-líquido, que produzia maravilhas, os homens dentro do esperma teriam de lutar entre si para conquistar o seu direito ao óvulo. Sabia-se se a luta tinha sido renhida ou não quando o pequeno-homem vencedor dava origem a uma criança com deformidades ou alguma coisa fora do normal. O processo era inverso: olhava-se para a criança e o seu estado requeria explicação ou não. Esta não era a teoria apoiada pela Igreja, como vimos, mas o Preformismo tinha sido totalmente colocado de parte em 1775 graças às descobertas de Spallanzani e era necessário estar atento às novas teorias. Obviamente o espermismo foi recusado pela Igreja: como era possível desperdiçarem-se tantas vidas? E a masturbação? Que acto ignóbil! (Génesis 38, 4-10). Acabou de imediato o Espermismo!


Antes que a Epigénese acabasse com a festa, o Ovismo ainda fez correr muita tinta. Literalmente! É que eram inúmeras as ilustrações dos naturalistas acerca da possibilidade de um ser humano nascer de um ovo. Temos que ver que o ovo sempre teve muita importância em todas as culturas. Sem contar com as variações que cada crença depois lhe associa, elas têm em comum o facto de verem o ovo como o princípio da vida. Não nos interessa dizer o que egípcios, budistas, persas pensam sobre o ovo pois para isso temos o dicionário dos Símbolos. Mas para fazermos uma relação breve com o que mais próximo temos da nossa cultura ocidental, já desde o Estoicismo, o universo era comparável ao ovo: a casca era a lógica, a clara comparável à ética, e a gema, no centro, seria a física; ou seja, os princípios da relação dos Estóicos com a Natureza. Esta ideia é tão antiga que se impõe as perguntas:
- Se o Mundo é um ovo, e se este ovo é a morada dos humanos, quem foi a mulheró-poedeira que o pôs? Eva não foi, pois Eva é posterior ao Mundo.
- E se os vivíparos desenvolvem-se no interior da mãe, como conciliar o Ovismo com a Viviparidade?

William Harvey
Ex ovo omnia
1651


William Harvey
Ex ovo omnia (pormenor)
1651

E para esta última questão é importante ver que as duas coexistiam: acreditava-se que um ser vivíparo (uma mulher) podia dar luz um ser à sua imagem e semelhança (amén!) e que esse ser era gerado dentro de um ovo que estava dentro dos ovários da mãe. E não foi uma ideia tão mal encarada como parece à primeira vista: Leonardo da Vinci – bom, mas este não conta – produziu alguns esboços e uma pintura onde mostra a criança a nascer de um ovo. O que me parece um bocado tonto para um homem que inventou o primeiro escafandro e o primeiro guardanapo. Mesmo mais tarde, havia quem dissesse que a razão para as mulheres terem os ovários na zona baixa do abdómen se devia à sua posição próxima do local onde o útero recebia o “grande fogo”. Reinier de Graaf, um naturalista holandês escreveu que as mulheres conservavam nos maiores folículos dos ovários (chamados folículos de Graaf), o ovo, o que, segundo a ilustração me parece improvável. O embrião já está formado e é bem grandinho para depois descer o útero na altura do parto.

Leonardo da Vinci
Studies of embryos
1509-14
Royal Library, Windsor


Leonardo da Vinci
Leda
1508-15
Galleria degli Uffizi, Florença


Reinier de Graaf
1672


Reinier de Graaf
1672

O ovo é no fundo uma alegoria humana da Caixa de Pandora, bem como o útero que o expulsa: todo o bem pode estar ali contido, mas o mal também. E é também uma forma de celebrar a morte, embora aqui só nos interesse falar dele enquanto veículo para a vida. Ainda que de uma forma um bocadinho excêntrica. E o Ovismo estende-se de tal forma à arte que podemos vê-lo tanto no quadro de Piero della Francesca “Madonna and Child with Saints”, como no livro “Admirável Mundo Novo de Adous Huxley. No primeiro exemplo, Piero della Francesca pintou um ovo de avestruz mesmo em cima da cabeça da Virgem e se fizermos uma análise da perspectiva do quadro e do seu Ponto de Fuga auxiliado pelas construções arquitectónicas, vemos que tudo na pintura se centra na cabeça da Virgem. È por isso impossível ignorar o ovo, embora seja comum em muitos altares dedicados à Virgem. A razão da relação entre a Virgem e o ovo de avestruz pode ser desdobrada: por um lado a analogia entre o Nascimento de Cristo (vindo do interior da Virgem Maria) e o ovo que incuba à luz do Sol e por isso, eclode sem intervenção humana (quase, porque na prática o nascimento de Cristo é uma forma de Ovismo – Ele nasce do interior da Virgem mas vem já numa redoma mística). Ainda nesta linha de pensamento, foi dito que o ovo era uma pérola e que por isso representava a Imaculada Concepção uma vez que tal como Cristo, a pérola sai sem intervenção qualquer do interior da concha. Por outro lado, há a relação entre o ovo e o nascimento e o ovo e a morte, pois é símbolo da renovação cíclica (daí o ovo da Páscoa que é a vitória da vida sobre a morte). Logo, diz-se que o ovo de avestruz (sendo a avestruz um dos símbolos heráldicos da família Montefeltro que encomendou o painel e que se vê pintada nele) remete para a morte de Battista Sforza (que faz de Virgem Maria) e o nascimento de Guidbaldo Montefeltro (que faz de Menino Jesus), como se tal como uma avestruz, ela tivesse enterrado o ovo na areia, tivesse morrido e deixasse cá apenas a sua imagem e o ovo a chocar.

Piero della Francesca
Madonna and Child with Saints (Altar dos Montefeltro)
1472-74
Pinacoteca di Brera, Milão

No livro “Admirável Mundo Novo” Huxley referia-se com mordacidade ao Processo Bokanovsky descrevendo-o como a forma asséptica para criar vários seres humanos concebidos a partir de um só ovo. Estes ovos não têm mãe, não há partos neste “Mundo Novo”, mas fica aqui patente a ideia de um útero materno que é substituído por uma fábrica, conservando-se apenas a ideia de ovo. Por mais que nossa imaginação avance, por melhor que seja a tecnologia, ainda concebemos um futuro em que homens e mulheres não serão necessários na reprodução, mas em que o ovo, a incubadora continua a existir, como são exemplo disso os embriões criados em laboratório no filme Matrix ou Relatório Minoritário.

5 Comments:

Blogger João Barbosa said...

vá lá, conte tudo "ab ovo" mas com jeitinho e como se eu fosse (talvez seja mesmo) muito burro... hoje estou com preguiça para postas grandes. faça-me um resumo de 3 linhas... vá 5... pronto! 10 e não se fala mais nisso.

8/10/09 7:05 da tarde  
Blogger Belogue said...

brevemente:
Hoje vigora a Epigénese (homem e mulher contribuem para a constituição do feto que começa numa célula e que ao longo dos nove meses se vai formando. Antes, pelo menos até ao século XVII pensava-se que o feto estava já formado aquando da fecundação (chama-se a esta teoria, Pre-formação). E existia, assim formado conforme iria nascer, ou no interior materno (teoria do Ovismo) ou no esperma do pai (teoria do espermismo ou do animalculismo). A Igreja abandonou esta última por achar que por cada ejaculação implicava a perda de vidas. O ovismo permaneceu mais um tempo, mas depois mostrou-se ser impossível criar crianças até aos 9 meses num ovário, como mostra a figura.

9/10/09 1:10 da manhã  
Blogger João Barbosa said...

muito obrigado. ser-se preguiçoso às vezes compensa ;-)

9/10/09 11:27 da tarde  
Blogger Arte em casca de ovos said...

È uma arte saber escrever. Sei ler dificil é escrever.

Carlos

27/2/10 10:33 da manhã  
Anonymous Biologa said...

Gostei muito do seu post!
Só por acaso tenho um trabalho sobre este tema para fazer e tem informação muiro precisa! Parabéns!! :)

Bjinho e continue a escrever asim!

30/12/10 7:49 da manhã  

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