quinta-feira, setembro 17, 2009

- o carteiro -
quando um não quer, dois não pecam - procriação II
Apesar de os homens (e as mulheres) muito terem equacionado sobre a procriação, o seu raciocínio nem sempre foi nem é ainda racional. Algumas teorias sobre a concepção do embrião têm tanto de fantasista quanto de perturbador e só podem ser o resultado de épocas opressivas ou de sociedades que usam a ciência e a religião para esconder as suas faltas. Estas invenções e mitos encontram-se em qualquer religião e em qualquer tempo. Note-se que ainda hoje nas revistas da especialidade, os supostos sexólogos e ginecologistas, médicos dóótóres respondem a perguntas como "sentei-me na moto do meu namorado. Estarei grávida?" (depende... ele também estava lá sentado?). Desde a Antiguidade que como já dissemos, foi muito justa para o cidadão (homem com mais de vinte anos nascido na Grécia, tudo o resto eram metecos, mulheres ou escravos e por isso, não cidadãos), mas madrasta para a mulher, proliferaram lendas que estavam associadas à mitologia, mas também serviam o interesse grego em não justificar o papel social da mulher. Vejamos... não estou aqui a fazer um manifesto feminista porque isso é uma grande chatice e eu não tenho paciência. Mas a verdade é que histórias inicialmente narradas pelos grandes escritores como Virgílio, Homero, Hesíodo ou Platão, passaram a ser Verbo. No que diz respeito à procriação dos seres humanos, dos mortais (isto porque a dos deuses vem mais daqui a nada), as mulheres são "autorizadas" a procriar com inspiração divina. Digo "autorizadas" porque obviamente se desconhecia todo o mistério que estava à volta da concepção do embrião. Mesmo o próprio útero era um mistério, uma coisa que sangrava, provavelmente dissuasora nas autópsias, no estudo do corpo morto. É certo que os gregos sempre preferiram esculpir homens e só mais tarde, com Fídias as mulheres passaram a ser tema e corpo de escultura. Por isso esta noção de concepção divina ou sem intervenção do homem justificou para os gregos os fenómenos injustificáveis. Virgílio fez passar a ideia, segundo uma descrição no texto Geórgicas que as mulheres (aqui sob a forma de éguas) engravidavam porque inspiravam o vento Zéfiro. Ficavam grávidas do ar! Outros filósofos diziam que as galinhas eram fecundadas apenas pelo cantar do galo e as perdizes, pelo cheiro do macho.

Andreas Cellarius
Influência da Lua na procriação
Na mitologia hindu a gestação de Buda durou dez meses e foi concebido em sonhos através da entrada no corpo da mãe (rainha Maya), de um pequeno elefante com seis dentes. Quando, após os dez meses, a rainha tentou colher uma flor de uma árvore, Buda nasceu da sua anca. O mesmo aconteceu na mitologia grega. Veja-se o exemplo de Dionísio, filho de Sémele, uma mortal que morreu enquanto Zeus se exibia perante ela. Ficou durante três meses na coxa de Zeus depois deste o ter retirado da mãe já morta. A própria mitologia grega tem os nascimentos mais estranhos da História (uma prerrogativa da mitologia). Atena, nasceu de elmo posto e já formada da cabeça de Zeus. Este tinha literalmente, comido a mãe dela, Métis. Afrodite nasceu do mar, pelo menos é assim que é pintada. Era filha de Urano; ou seja, era filha dos órgãos genitais de Urano que foram atirados ao mar após cortados por Cronos. Herácles nasceu graças a uma distracção de Hera (a legítima de Zeus) que para se vingar do seu marido andar metido com Alcmena, cruzou as mãos e os pés para ela não dar à luz. Só que distraiu-se e Alcmena lá deu à luz ao fim de sete dias de agonia. Na mitologia egípcia a promiscuidade era maior e nota-se no caso do nascimento de Osíris e Ísis, dois deuses primordiais. Osíris e Ísis eram gémeos que no útero da mãe estavam tão unidos que quando nasceram, já Ísis estava grávida de Hórus. O pai era, como não podia deixar de ser o irmão e marido Osíris. Esta história fez com o médico cirurgião Cosme Viardel reconsiderasse a sua tese sobre os gémeos e a bolsa amniótica de cada um, pois segundo aquilo que se dizia na época era que os gémeos falsos tinham bolsas amnióticas separadas para manter as decências


Cosme Viardel



E assim como a religião criou, à sua medida, as regras para o "bom sexo" que estava relacionado com o casamento e com a procriação, a sabedoria popular também criou as suas normas que apesar de estranhas, estão muitas vezes correctas e vão onde nenhuma ciência vai. Claro que os fenómenos da sabedoria popular podem ser explicados cientificamente, mas o facto de existirem criam por si estranheza. Lembro-me de ouvir coisas que mais tarde vi serem verdade como: um bolo ou um pão feitos por uma mulher com o período menstrual nunca levedam, a premira vez que uma árvore dá fruto, o mesmo não pode ser colhido por uma mulher ou a árvore não dará mais fruto. Como as mulheres não podem, devido aos filhos, abandonar as terras e partir em busca de uma nova vida, têm que, em muitas sociedades, dedicar-se à terra. São por isso elas as guardiãs dos segredos telúricos e com a sabedoria feminina, os homens não brincam. A Terra (feminino) é fecundada pelo Sol (masculino) e está em constante produção; está permanentemente e procriar. Por isso, e por as mulheres estarem relacionadas com a sabedoria tectónica, em determinadas civilizações como as que professam crenças indianas os jovens esposos que desejem filhos devem passar a primeira noite numa caverna, numa gruta de nome “fona”; ou seja, vagina. Daí, do interior da Terra vai brotar uma criança. Dizem que os menires tinham esse significado: pedras que fecundam para sempre a Terra. para além disso tinham um poder afrodisíaco e médico, uma vez que curavam os homens que neles se sentassem de infertilidade e seriam benéficas para as mulheres que ali roçassem o sexo e pretendessem engravidar. Outras manifestações naturais como os rios, quedas de água e as respectivas nascentes possuem um significado e analogia óbvias. São os locais de onde as forças da Natureza emergem do interior da terra. Há populações que recomendam, aos casais desejosos de filhos, que tenham relações na água: se serve para os cardumes e para os patos, serve para os humanos. As mulheres que desejem ser fecundadas devem abrir as pernas frente ao mar ou a uma corrente de água, para que esta possa penetrar no seu sexo. Da mesma forma se diz que a água, que a rebentação das ondas do mar no ventre de uma mulher grávida provoca aborto. Para além desta água que brota do interior da Terra, existe uma outra forma de presença da água, à qual é atribuída um poder fecundante que na minha opinião faz mais sentido: a água das chuvas, especialmente amada nas regiões que sofrem com a seca. A devoção e interesse que certas populações mostram pela água das chuvas é fácil de compreender: não vem da própria Terra, mas do Céu, logo é uma forma de fecundação e é tão rara e preciosa, única no ano (na Primavera) que só pode ter um poder de fecundar os seres que por ela são atingidos. Voltando à mitologia, não esqueçamos que Danae foi fecundada por Zeus que se transformou numa chuva de ouro para chegar até ela. Desta união nasceu Perseu.

Charles Joseph Natoire
Boreas and Orinthyia
1741
Indianapolis Museum of Art


Ticiano
Danaë
1553
Hermitage, São Petersburgo

Com efeito, com o passar dos tempos e até pelo menos ao século XVII, acreditava-se que era possível as mulheres engravidarem pelo ar ou pela água. Na Idade Média, esta justificação era muito útil para as senhoras de bem cujos maridos partiam para a guerra. Quando se viam "solteiras" e com mais uma criança a caminho, só uma boa mentira corroborada pela Igreja podia salvá-las das más-línguas. Desta forma virgens tinham filhos, viúvas tinham filhos, mulheres sem marido tinham filhos... tudo isto sem o toque sequer de um homem. O homem exilado ficava convencido e tudo acabava bem na harmonia do lar. Por outro lado, afastava as mulheres de lugares como os banhos públicos ou as termas. Fazia com que elas andassem mais cobertas, pois tal como se pensou em relação aos males do corpo, a culpa era do banho. Muitas mulheres eram aconselhadas a não ter as janelas abertas à noite, se não queriam engravidar; poderiam engravidar apenas pelo inspirar. (Não deixa de ser curioso que um dia destes numa conversa com um médico ele dizia que respirar era fatal, era o que levava à morte.) A lenda de que o sémen - ou qualquer coisa muito semelhante - poderia andar pelo ar ou pela água - vinha de uma crença inspirada em Anaxágoras e chamava-se Panspermia. É-me difícil explicar o que era, mas esta crença dizia mais ou menos isto: pan (total)+sperma (semente) queria dizer que a vida estava em todo o Universo, que era fruto de um caldo arcaico, onde se tinham formado, com a ajuda de forças da Natureza (relâmpagos, furacões, chuvas) moléculas, aminoácidos, proteínas, genes por fim os seres microscópicos com um grau de complexidade e aperfeiçoamento cada vez maior. Era a geração espontânea aqui ilustrado por uma parte de um quadro de Bosch onde do lago as espécies nascem por geração espontânea. Assim, tal como o pólen retirado às flores andava pelo ar, quem sabe se os espermatozóides voariam.
Hieronymus Bosch
Triptych of Garden of Earthly Delights
1500
Museo del Prado, Madrid

Na minha opinião, e tenho a certeza que na opinião de muita gente, tenho a certeza que estas aberrações, ou pior do que isso, a ausência de um interesse científico sobre a forma como a mulher pode engravidar e sobre o seu aparelho reprodutor em comparação com as teses sobre o aparelho reprodutor masculino, são sexistas e criadas como encapotamento de uma incapacidade para penetrar no mundo feminino. Este "penetrar" também quer dizer isso mesmo que estão a pensar! São sexistas porque os homens que não compreendiam bem o seu papel na reprodução (porque é que elas é que são incubadoras e eles não é uma pergunta capaz de incomodar muitos homens, perante a gravidez dos cavalos marinhos, mas é igualmente uma pergunta capaz de ajudar muitos clérigos. Afinal, Cristo disse que amaldiçoaria Eva com as dores do parto). São por outro lado infantis porque, sabendo nós que as mulheres vinham com "mais peças", os homens nunca tentaram perceber a razão para cada uma delas e atribuíram isso a algo diabólico. A mulher é a incubadora, o incubo, o demónio que dará uma vida. Não é por acaso que a mulher está associada à serpente. Vejamos este excerto do Timeu de Platão:
"Também nas mulheres e pelas mesmas razões, a chamada matriz ou o útero é um animal que vive nelas com o desejo de fazer filhos. Quando fica muito tempo estéril após o período da puberdade, tem dificuldades em suportá-lo, indigna-se, erra por todo o corpo, (...) até que, quando o desejo e o amor unem os dois sexos, eles podem colher um fruto, como numa árvore, e semear na matriz, como num sulco, animais invisíveis pela sua pequenez (...)"

O mistério da negação das mulheres face ao sexo, comparativamente às ereções masculinas (porque o útero tem erecções internas, ah pois é!) involuntárias e "indesejadas" durante o sono (causadas por Lilith segundo alguns crentes), é algo de intrigante. O homem e a mulher só poderiam pecar se os dois quisessem, mas para os homens naquela altura, o enigma que constituía o fascínio por esta porta do corpo feminino, porta esta cuja abertura estava dependente delas, apenas da vontade delas, era assustador. Entre o ar e a água e o homem, o homem via-se ameaçado pelos elementos naturais.

Entre estes elementos naturais encontramos a terra. Não estamos a falar na Terra como princípio feminino criador, mas como fonte de nascimento de crianças numa extensão daquilo que já acontece com as espécies vegetais. Vários deuses nasceram sob as árvores e na Alemanha acreditava-se que existiam criaturas semelhantes a duendes a viver dentro das árvores com nomes estranhos como "esposas-de-musgo". Existe um vocabulário que criou a tradição e corrobora o que aqui vamos falar: a vagina é associada à maçã cortada ao meio, ao morango e a alguns vegetais, o pénis é associado à cenoura, ao pepino e os testículos, a todos os frutos que sejam pequenos e redondos e por fim a fecundação é, nos termos mais infantis, a colocação de uma semente masculina na "barriguinha da mãe". Mesmo nas Escrituras, a mulher é vista como um campo fértil, a ser semeado pelo homem e segundo a sabedoria popular, o primeiro dia da Primavera é o dia do casamento dos pardais. Quando se fazem as colheitas, homens e mulheres participam em festas que não sendo propriamente orgíacas, são sempre vistas com muito entusiasmo estando os trabalhos divididos entre mulheres e homens: elas debulham o milho, eles malham-no. Diz-se que a romã dá ao homem a força viril, que o fruto da piteira, segundo a religião asteca foi utilizado para nutrir o primeiro homem e a primeira mulher, na Europa planta-se uma macieira sempre que nasce uma criança, o fruto da Oliveira era usado nos antigos rituais de fertilidade, no Japão o pessegueiro é símbolo da fertilidade, and so on, and so on...
A ideia que as crianças nascem das couves está relacionada com esta associação entre os frutos e os vegetais e a fertilidade, mas também com a falta de argumentos para explicar às pessoas - às crianças em especial - de onde é que elas nascem. Dizia-se que vêm de França transportadas pela cegonha. Aliás, os franceses utilizam muito os nomes dos vegetais como "mon chou" (minha couve) para se referirem a algo querido ou pequeno ou que amam. Por outro lado, embora essa seja uma realidade que nos é distante, para o paganismo a couve era utilizada para designar o órgão sexual feminino. Associam as duas coisas por causa do cheiro (eu nem sei o que dizer) e por causa do desenho da couve quando cortada.




Não era só a flora que tinha influência nos nascimentos; a fauna também tinha. Quer isto dizer que assim como era possível uma mulher engravidar de igual forma de um homem como de um elemento natural (um respiro, um gole de água, uma pedra, uma flor), também podia ficar grávida de um animal. A mitologia grega já nos diz isso, mas convém lembrar alguns exemplos. Não é que ninguém vá ler e ficar mais esclarecido, mas eu fico melhor com a minha consciência. A rã, por exemplo é um símbolo fetal no Egipto e tem para o Ocidente um significado evolutivo que muitas vezes não notamos. Quem não conhece a história dos irmãos Grimm em que o sapo (está certo que um sapo não é uma rã) é beijado pela princesa. O sapo é o estado intermédio entre o girino/espermatozóide e o humano (o sapo transforma-se em príncipe). A serpente, o ourobouros que já referi aqui é a serpente que morde a própria cauda. Como forma um círculo fechado, é estéril, mas como se fecunda a si própria pode ser vista como símbolo da fertilidade.

Paolo Porpora
Still-Life with a Snake, Frogs, Tortoise and a Lizard
National Museum of Wales, Cardiff

Antonio Carracci
The Rape of Europa
Pinacoteca, Bolonha

Bartolomeo Ammanati
Leda with the Swan
Museo Nazionale del Bargello, Florença

2 Comments:

Blogger Sou said...

Um post muito bom João

15/6/15 3:31 da tarde  
Blogger Sou said...

Um post muito bom João

15/6/15 3:31 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home