sexta-feira, setembro 11, 2009

- o carteiro -
Quando um não quer, dois não pecam - Procriação I
Vamos dar aqui início a uma história, breve e provavelmente incompleta, sobre o nascimento: como era visto no início dos tempos, como era explicado, as tradições e as crenças, o papel de mãe e de pai e tudo o resto que me for possível investigar. E já há muito tempo que estava para falar disto, mas por uma resistência minha a tudo o que me lembre crianças, nunca o fiz. Agora que essa ferida vai ficando sarada, torna-se indiferente os filhos dos outros.

Se hoje para ter um filho é necessário haver apenas um espermatozóide e um óvulo, estando implícita a ideia de que tem de existir uma vagina e um pénis e por conseguinte, penetração, quando não havia estas modernices, a geração de uma criança passava obrigatoriamente pelo coito, ou como se dizia, coitu penis et cunni. Existia então a necessidade de contacto físico, de coexistência espacial, enquanto hoje sabemos que basta os fluidos se envolverem, não implicando essa envolvência a presença dos respectivos donos. Ainda hoje porém o nascimento é um mistério: o número de coisas e a variedade delas que pode existir na concepção de uma criança é tão grande que certos médicos dizem que um nascimento é um milagre. Se houve coisa que sempre me intrigou, para além do gira-discos, foi o parto natural. E se hoje associamos o coito à satisfação física de duas pessoas (na melhor das hipóteses) e/ou à fecundação, demorou muito ao Homem relacionar uma coisa com a outra. O Homem tinha relações sexuais porque via outro ser igual a ele, com as costas arqueadas que se encaixavam perfeitamente no seu tronco arqueado, a lavar num rio, acocorado, ou a catar outro ser. Mas o Homem não percebia que o seu acto é que era o responsável pela saída, após nove meses, de uma criança do útero da sua mãe. Atribuía por isso um papel mágico à mulher, pois era esta que transportava dentro de si o pequeno ser, e era dela que ele saía a rastejar.

Templo de Kandariya Mahadeva
1050 a.C.
Índia
Porque os mecanismos que regulam a relação entre o acasalamento e a concepção não estavam definidos, a Igreja principiou opor tomar o monopólio da educação dos seus crentes. E dos crentes dos outros também. Com vista a que o acto sexual não fosse banalizado por pudicícia do clero, mas sempre a dar resposta ao "Crescei e multiplicai-vos" dos Génesis, a Igreja apropriou-se da questão. Era no entanto difícil perceber se estavam a cometer uma blasfémia ao refrear os ânimos dos crentes ou se estavam apenas a assegurar a ordem do Mundo através da colocação de cada coisa no seu tempo: o conhecimento mútuo, o crescimento em Deus, a virgindade até ao casamento, a concepção para maior glória de Deus, etc. Por um lado havia a Sagrada Escritura, por outro era também necessário dar ouvidos aos padres da Igreja como São Tomás de Aquino que defendia que os órgãos sexuais do homem e da mulher tinham sido dados por Deus, não para o prazer dos próprios, mas para a conservação e perpetuação da espécie humana, para povoar assim a Cidade de Deus e apressar o Juízo Final! O prazer teria de ficar de fora, uma vez que era associado à animalidade e que estava fora dos contornos da lei de Cristo. Nada nas Escrituras falava aos padres da Igreja de prazer, à excepção do prazer de amar a Cristo e esse era muito platónico. Não é por acaso que, sendo portadora da semente, a mulher era vista como a tentadora, a culpada pelo prazer, pelo divertimento a que também podia estar associado o sexo.
Assim filósofos, padres, fisiólogos, doutores e sábios apressaram-se a encontrar uma norma que regulamentasse as relações sexuais. Nessa norma estava escrito o tamanho que o pénis deveria ter, o número de vezes em que era aceitável ter relações sexuais (não sei se por semana, se por mês ou por ano), a continência que se devia ter no sexo (sexo, mas pouco), quais as posições amorosas que devem ser banidas e quais as que são mais dignas, quais as consequências do sexo para o marido e para a mulher, qual a estação do ano mais propícia para procriar, qual o momento do dia (se de barriga cheia ou em jejum). De lado, vistas como acessórias e por isso prejudiciais ficaram as carícias, a masturbação a dois, as posições menos dignas, a relação sexual durante a menstruação (razão pela qual nasceriam crianças com lepra ou ruivas) e que já existia no Antigo Testamento, o sexo desenfreado e o desejo ardente. Quem não obedecesse a estas regras, principalmente as mulheres pois eram tidas como incitadoras de tudo o que era negativo, como se o seu útero fosse a casa do Diabo, era ameaçado com o fantasma da esterilidade, o aborto espontâneo e o nascimento de crianças com todos os tipos de deficiências.

O casamento era assim a única forma de ter relações sexuais com o aval divino, desde que não constituísse fonte de prazer para que as praticava e para além disso, fosse a origem de uma nova vida. Por isso, problemas como a frigidez ou a impotência eram, até há pouco tempo, causa de anulação de um casamento. Segundo a Igreja de hoje, um casamento pode ser anulado se o homem for impotente, mas não se for estéril. É que mesmo não podendo ter filhos, o homem estéril consegue ter uma erecção, logo consegue consumar o casamento. Já o homem impotente não consegue ter a erecção, logo não pode consumar. Como vemos, para a Igreja a questão do casamento entre pessoas de sexos diferentes não está na procriação, não é esse o seu propósito, mas na capacidade de ambos os membros poderem ter sexo, dê lá por onde der.

Na Grécia Antiga e até ao século XVIII a fecundação era explicada segundo os princípios de Hipócrates e de um seguidor seu, Galeno. Para Hipócrates o embrião resultava da união de duas sementes, a semente masculina e a semente feminina, ambas colocadas no interior do útero. Para Galeno havia uma emissão de esperma tanto por parte do homem como por parte da mulher, mas neste encontro de esperma, a semente feminina era mais fria com vista a aquecer a semente masculina. Havia no entanto questões às quais os médicos gregos respondiam com menos clareza no raciocínio. No que diz respeito à produção de esperma, por exemplo, os médicos gregos, Platão e os pitagóricos acreditavam que era feita no cérebro, descia pela espinal-medula e alojava-se nos testículos que serviam apenas de simples reservatórios. Por razões como esta as ramificações auriculares da artéria temporal chamam-se ainda hoje canais espermáticos. Já para outros médicos como Anaxágoras e Demócrito, a semente é produzida um pouco por todo o corpo teoria esta muito útil pois pode explicar a hereditariedade a todos os níveis. Em 1563 continuava a acreditar-se nisto, se tivermos em conta o que o professor italiano Niccolò Massa defende: que todas as partes do corpo contribuem para a produção da semente, sendo que uma delas produz uma parte muito importante do todo, parte essa chamada "licor". Para este professor os licores juntam-se nos testículos sem se misturarem. E esse todo é que constitui a semente. Mas no útero os licores dispersam-se para formarem os diferentes órgãos. Engenhoso, não?

Cerâmica grega
480 and 460 a.C.
Pompeia
Isto mostra que se os gregos são os precursores da Democracia, das artes e do pensamento filosófico não são dos conhecimentos médicos. Ressalve-se as limitações técnicas, não se pode ignorar que havia muito de imaginação nas teorias gregas. Aristóteles achava que o feto resultava da união do esperma masculino - segundo ele um resíduo da digestão em grau último - com a menstruação da mulher. A maior parte dos filósofos e médicos gregos era omissa em relação ao papel da mulher na procriação. Seguindo uma teoria falocrática, para estes homens a mulher e o seu útero era apenas o receptáculo de um embrião que já estava formado no esperma masculino. Daí a Teoria do Homúnculo. A excepção, mais tarde, é Descartes que defende que tanto o licor masculino como o feminino são contributo importante para a construção do todo. Ele referia que tal como na fermentação do pão, às tantas já não havia massa velha (fermento, hoje conhecido por fermento de padeiro) e massa nova. Assim, na relação sexual nenhum dos fluidos era privilegiado face ao outro.

Antoine van Leeuwenhoek
Foi em 1677 que Antoine van Leeuwenhoek descobriu ao microscópio os espermatozóides. A descoberta logo originou uma produção gigantesca de material sobre a mesma, sobre esses girinos (pequenos vermes e pequenos animais eram outras das denominações) que habitavam o corpo do homem. Para além do epítetos já referidos as pessoas referiam-se aos espermatozóides como sendo os “animaizinhos íntimos”, “os parasitas comensais”, os “infusórios”, os “vermículos” e outros mimos todos eles concebidos para designar esses pequenos animais que viviam dentro dos fluidos corporais masculinos, de cérebro pequeno e cauda comprida. Acredita-se neste tempo que cada “animal” destes tem uma alma própria (Leibniz aquiesceu, mas apenas na alma em sentido lato) e uma vontade também própria que faz com que o mais forte entre eles seja o vencedor e atinja, como prémio, a entrada no óvulo. Mais uma vez as deficiências do feto entram aqui justificadas pelo estado em que o espermatozóide atinge o óvulo: se a batalha foi dura, então é provável que a criança nasça com alguma deficiência.

Antoine van Leeuwenhoek