- o carteiro –
O homem corvo
O seu nome de baptismo foi Charles-Edouard Jeanneret-Gris, mas a uma determinada altura da sua vida Charles resolveu adoptar uma alcunha que ficava no ouvido, que era totalmente adequada para um arquitecto com as suas ideias, assim como se coadunava na perfeição com a sua vida. Le Corbusier, ou “O Condor” era o alter-ego do arquitecto que aos 20 anos começou a assinar assim os seus documentos. Num postal enviado aos pais por alturas do Natal, Charles auto intitula-se “corvo”. Ora como se sabe o corvo é uma ave muito associada à morte, mas por uma questão de sobrevivência. Penso até que esta denominação “Le Corbusier” devia algo às teorias de Nietzsche quanto ao Homem na sua obra “Assim falava Zaratrusta”, assim como à ideia Nietzschiana de que Deus estava morto. Ao assumir-se como “Le Corbusier”, o arquitecto coloca-se numa posição demiúrgica uma vez que quando traduzida a expressão diz tratar-se de “O Corvo”. O uso do “Le” não é arbitrário, pois pressupõe a existência única e sem rivais deste super-homem. A outra analogia com Nietzsche é através de “Assim falava Zaratrusta”. Neste livro temos dois factores muito importantes: a águia e a ciência. Ao escolher ser águia, ser pássaro e ter a capacidade de voar sobre as cabeças humanas, Le Corbusier assumia-se como seu próprio Deus e é por essa religião que se rege. Há quem também diga que a escolha deste nome não é de todo casual, um incidente, já que este seria mais ou menos o sobrenome do avô do arquitecto. Le Corbusier viria então de Lecorbésier que traduzido, pelo menos naquela altura, queria dizer: “o corvo incomparável”. O corvo que voa também volta sempre ao mesmo ramo, onde tem o único ninho. Isto talvez seja uma tentativa da parte do arquitecto de se alicerçar.
Há sempre implícito em Le Corbusier a ideia de confronto. Na sua viagem com um amigo ao próximo Oriente, Itália, Grécia, Turquia e Cairo ele vai sugando como uma esponja as coisas que via e que produziam nele alguma espécie de frémito, de impacto. Quando visita a Acrópole, por exemplo, fá-lo sozinho ao fim da tarde, com a luz do crepúsculo e opta, não por tirar fotografias, mas por desenhar pois o desenho era mais intuitivo, transmitia mais emoções e era passível de mais interpretações que a fotografia. Ao mesmo tempo que pretere a máquina fotográfica, um símbolo do seu tempo, compara o Parténon a uma máquina e coloca-o como símbolo máximo da razão, tal como Marinetti dizia que um carro de corrida era mais belo que a Vitória de Samotrácia. As suas obras são um pouco a síntese disto, são actos de razão uma vez que nelas o homem é um pouco domesticado através da matriz industrial, podendo ser assim inscrito num circuito platónico. Um exemplo desta comparação com o Platonismo é o Modulator que através da secção áurea quantifica todas as secções e posições do homem.
A Capela de Ronchamp que escolhi falar de entre muitas das suas obras estava inserida num programa de reconstrução de edifícios destruídos pela guerra. Quando fazem a proposta de construção de Ronchamp, Corbusier não era um homem religioso. Por isso, tenta inteirar-se dos actos e ritos católicos a fim de mapear as possíveis orientações da obra e dar resposta a todos os requisitos. A capela foi sucessivamente destruída devido a várias razões o que levou a que a mesma fosse fruto de uma ideia e de um acto peregrino, um acto “sísifico”. E é de facto um edifício magnetizante pelas suas formas que estavam muito avançadas para a época, para um período pós-guerra que se queria racional. Há na capela a ideia de duplicidade que de resto há no arquitecto que criou um alter-ego que guarda em si outro alter-ego. Vista do exterior, ela é como um barco no topo de uma colina, um barco que navega muito devagar; no interior é como as casas com chaminé de fada da Capadócia, como um refúgio. Até prefiro pensar que se aproxima muito das teorias estéticas do gótico e que as aberturas funcionam simbolicamente como vitrais coando a luz em exactos momentos do dia e dos rituais que no interior têm lugar. De facto esta opinião tem paralelo com o passado, mas não com a Idade Média: Corbusier baseou-se no que viu da villa Adriana na sua viagem a Itália. A luz é filtrada e escorre pelas paredes derramando um reboco rugoso que dá o sinal de uma presença sobrenatural. E quando a luz invade o interior o vermelho é a cor que se assume, que assume a sua intensidade. A dualidade referida há pouco também se nota no confronto de pesos, como por exemplo entre a leveza do tecto e a robustez das paredes, entre o orgânico e o ortogonal, entre as paredes planas sem aberturas e as paredes perfuradas, entre o tecto suspenso e o tecto atarracado, entre as linhas axiais e as linhas que desenham elementos como nuvens, mãos, rios, cobras e estrelas, entre as cruzes e pedras fundadoras e as borboletas e pombas que marcam a entrada da capela. A partir da carapaça de um caranguejo nasce a configuração de um abraço e a partir do corpo crucificado de Cristo nasce a ossatura interior do tecto.
A espontaneidade um pouco agrilhoada da criação também se prende com o confronto entre o sentido de pertença da obra a um lugar e o sentido sagrado da mesma que faz com que ela pertença a lugar algum por ser como o próprio Deus: omnipresente. Esta criação que geralmente associamos ao divino e que necessita de um tempo de incubação também pode estar associado ao maligno, uma vez que o “incubo” era um demónio. O acto de criação também poderia ser um acto de esconjurar o demónio. Cruzes canhoto, lagarto, lagarto, lagarto.
3 Comments:
é por estas e por outras que achava que tinha a tal profissão... está belíssimo... uma barrigada de informação e pensamento.
concorrência (des) leal
Caro João Barbosa:
Olhe, não sou professora de ninguém, mas vou aprendendo alguma coisa com aquilo que leio!
Caro AM:
tenho a certeza que está a brincar. Acha que alguma vez vou eu, sapateiro, subir acima da chinela? conheço a minha práia, cára. arquitectura é consigo e com o Despropósito.
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