segunda-feira, janeiro 26, 2009

- o carteiro -

A antecipar o dia dos Namorados (que por acaso é um dia “esgromitante”), I will eat you alive.

É sabido que a comida e o amor desde sempre estiveram de mãos dadas. Ou de talos de couve dados, ou de sementes enxertadas… Mas e o canibalismo e o amor? Os antropófagos amavam as suas vítimas ou tinham apenas fome? Satisfaziam uma necessidade biológica sem atenderem a quem, ou prestavam atenção ao pneuzinho, ao peitozinho, à coxinha, à asa… que é como quem diz, à clavícula mais o braço? Tenho a certeza que escolhiam bem as vítimas. Talvez não fosse por amor, mas é sabido que no amor os termos culinários são escolhidos. Basta estar no comboio ou até em casa, no recesso do nosso lar, para ouvirmos um homem a chamar a mulher por “torrãozinho” e ela por “moranguinho”. Ou numa versão mais hard core, ele dizer-lhe que a quer comer, e ela que o quer devorar (estou a actualizar os papéis de género para não dizer que o homem come e a mulher é comida). Ou numa versão mais pragmática, uma mulher diz que gosta de ver carnes frescas e um homem que uma mulher atraente é um belo naco. E por fim, numa versão mais leve, diz-se que quando duas pessoas estão apaixonadas, andam “todas derretidas”. Para corroborar isto temos toda a concepção católica da remissão do pecado e do sacrifício de Cristo aceite pelo Homem que se baseia no momento da Comunhão na Eucaristia em que o sacerdote profere estas doutas palavras: “Tomai e comei, este é o meu corpo que será entregue por vós”. E depois: “Tomai e bebei, este é o meu sangue derramado por vós”. Neste caso, o canibalismo ainda que encapotado foi uma forma de prender fiéis. É de referir, em abono do Cristianismo, que o Canibalismo é mais antigo que o culto de Cristianismo, e que não penso que o “Canibalismo Eucarístico” se tenha inspirado no Canibalismo primitivo. Encontramos semelhanças óbvias: ambos são movidos pelo amor. Um pelo amor à carne humana, outro pelo amor a Cristo. Os povos primitivos são uma síntese entre os dois tipos de Canibalismo uma vez que acreditavam que podiam incorporar as características da vítima que devorassem, apenas por comê-la. Um exemplo disso é o caso Dr. Livingstone, o explorador que de Malária. Quando isso aconteceu, os seus servidores, nativos que o acompanhavam, trataram de comer os seus órgãos por acreditarem que a força e a coragem do explorador vinha deles.
O canibalismo mitológico também teve os seus exemplos e embora fosse sempre vista como mote para a tragédia (Shakespeare e Séneca), não deixa de ser, em alguns casos, desculpável. Quanto mais não seja porque eram deuses e não pessoas de carne e osso. Os exemplos mais prementes são o de Tiestes e Atreu. Triestes disputava o trono de Micenas tal como o seu irmão Atreu, mas mantinha um relacionamento amoroso com a mulher deste. Quando perdeu a luta pelo trono, Tiestes foi expulso de Micenas, mas Atreu descobriu a infidelidade da esposa. Com o pretexto de uma suposta reconciliação convidou Tiestes para um banquete em sua casa e no fim mostrou-lhe em que consistia o cardápio: Atreu tinha mandado matar, cozinhar e servir os filhos de Tiestes e deu-os a comer ao próprio pai.


Tântalo, de quem já falámos aqui no Belogue, era filho de Zeus e de uma humana. Um dia, com a intenção de testar a omnisciência dos deuses, roubou-lhes os seus manjares habituais e serviu num banquete a carne do seu próprio filho Pélope. Os deuses descobriram e lançaram-no ao Tártaro (numa pena muito semelhante à de Sísifo pois baseia-se na repetição de um trabalho infrutífero) e fizeram-no mergulhar em água com uma árvore a pender sobre ele, com frutos bem próximos. Sempre que erguia um braço para apanhar a fruta e comer, o vento afastava os ramos. E sempre que tentava beber água, esta descia.

Tereu, filho de Marte e marido de Procne, teve com ele um filho chamado Ítis. Mas Tereu acabou por se apaixonar pela cunhada Filomela e violou-a. Para que esta não pudesse manifestar-se e dizer o que aconteceu, cortou-lhe a língua, mas ela, que estava muda, mas não estava morta, comunicou à irmã, através de uma tapeçaria em que trabalhava, o sucedido. Procne resolveu matar o próprio filho, o filho dos dois e serviu a Tereu as carnes de Ítis. No fim mostrou-lhe a cabeça do filho e confrontou-o com o crime cometido por ela e com aquele cometido por ele contra a sua irmã.

Pieter Pauwel Rubens
Tereus confronted with the head of his son Itylus
1636-1638
Museo del Prado, Madrid

De Saturno já se sabe que comeu os seus filhos de forma a evitar que qualquer um deles o pudesse matar e substituí-lo. Talvez seja por essa grande tragédia que Saturno seja relacionado com o humor melancólico e triste.

Rubens
Saturn Devouring His Son
1636
Museu do Prado, Madrid

[Há alias um certo pudor em falar de Canibalismo (embora hoje o post seja dedicado ao Canibalismo amoroso). Há um antropólogo que defende que o século XX foi hipócrita em relação a isso pois não se coibiu de produzir um número gigantesco de cadáveres, mas nunca, admitiu que muitas pessoas foram devoradas em momentos de crise, principalmente durante a Segunda Guerra Mundial, na Tragédia da Medusa e em certos pontos da Ásia e da Ucrânia.]

A literatura foi quem melhor mostrou o canibalismo amoroso. No Decameron de Boccaccio notamos por diversas vezes a ânsia do canibalismo ou até, podemos dizer, o canibalismo passional. Numa das passagens é servido num banquete um coração humano. Trata-se do coração de messer Guglielmo Guardastagno que o ciumento messer Guglielmo Rossiglione dá a comer à sua esposa depois de ter assassinado o rival que ela amava com todo o seu corpo e alma. E amava tanto o outro homem que não era seu marido, que comeu o coração com prazer a pensar que se tratava de coração de javali. O marido pergunta-lhe, com sadismo o que acha do prato e os dois trocam opiniões sobre os temperos do pitéu.

Na Lolita de Vladimir Nabokov o amante disserta sobre a jovem nos seguintes termos: “Um só agravo contra a Natureza me inquietava: a impossibilidade de virar a minha Lolita do avesso e de aplicar a minha boca voraz ao seu jovem ventre, ao seu insondável coração, ao seu fígado de nácar, aos cachos de espuma marinha dos seus pulmões, aos pequenos rins geminados”.
Mas um dos melhores exemplos da relação entre a comida e o acto de comer o outro e as fantasias sexuais foi Ítalo Calvino no livro “Sob o Sol-Jaguar” que está dividido em três narrativas. Numa delas um jovem casal aventura-se numa viagem ao México e pelo caminho vai descobrindo o prazer e o prazer de comer. Logo no início do conto, Olívia e o marido, o narrador, notam, no local onde estão hospedados um quadro que retrata uma freira e um padre, de pé, com os braços ao longo do corpo, mas um pouco afastados do mesmo e com uma distância entre eles que incomoda as duas personagens. E logo Olívia diz: “Gostaria de comer chiles en nogada…”. O narrador, como podemos ver, não se limita a dar asas à velha fantasia do homem que come a amante, mas permite-se dizer que também gostaria de ser comido por ela: “Imaginava-me a sentir os seus dentes na minha carne, a sua língua a erguer-se contra o palato envolvendo-me em saliva, para logo me impelir para a ponta dos caninos…” De facto, e apesar de todos os contratempos na relação (ela acusa-o de ser monótono o que só atiça nele a tendência antropofágica), culmina num canibalismo simultâneo mesmo no fim do livro.


Assim, o canibalismo não tem sempre de ser conotado com algo negativo. Claro que há uma distinção entre o canibalismo propriamente dito, como satisfação de uma necessidade básica ou continuidade de rituais tribais, do canibalismo amoroso que aqui abordámos. O canibalismo amoroso é uma conclusão natural das relações humanas; é uma tradução verbal daquilo que um corpo quer fazer ao outro corpo em termos sexuais. Não sei se este tipo de ensejo sexual foi sempre referido assim, ou até se o paradigma mudou (há quem se refira ao sexo como um acto homicida), mas seja como for, e venham quais os paradigmas que vierem, a lei da barriga (gastronomia = gastrer (estômago em grego)+nomos (leis em grego)) vai estar sempre ligada à lei do sexo (que apelidei de erosnomia = eros (amor sexual em grego)+nomos (leis em grego)). Dura lex, sed lex!

2 Comments:

Blogger João Barbosa said...

não se lembra do caso daquele alemão ou austríaco que meteu um anúncio num jornal a dizer que queria parceiro para canibalismo, depois houve um tipo que respondeu e deixou-se literalmente comer, tendo deixado uma carta a ilibar o outro?
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revelação de intimidade ... gosto de dar dentadinhas

26/1/09 11:26 da manhã  
Blogger Belogue said...

Caro João Barbosa:
mas esse não era para comer, pois não? penso que ele apenas queria ver alguém a morrer daquela forma. o que não deixa de ser muito macabro.

quanto à intimidade, o João Barbosa é que sabe!

30/1/09 12:23 da manhã  

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