segunda-feira, outubro 06, 2008

- o carteiro -
que fazer com esta obra?
Não sei se há bens com prazo de validade ilimitado. o açúcar, por exemplo, não tem prazo de validade. o ouro, que eu saiba, também não se estraga: há coisas que ultrapassam o nosso próprio prazo de validade mesmo existindo para nos servir, ou sendo fruto da nossa intervenção. As esculturas de Miguel Ângelo permaneceram e ele pereceu, os mosaicos bizantinos continuam no mesmo sítio e quem ali os colocou há muito se foi deste mundo. No entanto, haverá uma pátina temporal que passa por tudo isso. Há obviamente o desgaste de uma obra, seja ela de que material for feita ou em que século. E é óbvio que um cuidado permanente evita desastres maiores embora seja uma panaceia que segura, mas não assegura e para além disso, altera. De cada vez que uma obra de arte sofre uma intervenção de restauro ou uma simples intervenção de rotina, perde algo e ganha algo. O que está errado na frase anterior é que aquilo que ganha, não devia ganhar. Quando um quadro é limpo, o pó, por exemplo, é retirado. mas com ele a pigmentação. e quando um quadro é restaurado, muitas vezes acrescenta-se algo que não existia. o que vemos na capela sistina hoje (ninguém me pode assegurar que assim seja, mas digo-o no contexto deste post), não é, por mais preservada que a obra esteja, aquilo que podíamos ver se a tivéssemos visitado durante a pintura dos frescos que a cobrem. Numa analogia, é o mesmo que dizer que por melhor que a Madonna esteja aos 50 anos, não é igual à Madonna de há 30 anos. (para o bem ou para o mal, goste-se ou não se goste a atendendo a que ninguém durará para sempre nem será sempre o mesmo.)
Mas esses problemas associados às obras de arte são os menores. Quando a arte resolveu que queria estar no White Cube e quando renegou a teoria darwinista da própria arte (em que à arte de hoje daria lugar uma arte de amanhã melhor, mais apurada, aperfeiçoada), preferindo seguir um caminho que muitas vezes torna difícil a sua permanência no mundo das obras de arte vivas, bem como a nossa compreensão, eis que surgiu um problema maior que o pó, e a trepidação, e o barulho, e o fogo e as mudanças de temperatura... a obra de arte que antes superava o tempo de vida do artista porque era feita de um material não perecível pelo menos em séculos, é agora feita de materiais com tempos de vida por vezes mais curtos que o de uma borboleta. Isto sem contar com aquelas obras que são impossíveis de transportar, ou que não se sabe se ficam de cabeça para cima ou de cabeça para baixo, ou até mesmo aquelas que sujam. O museu novo, o White Cube tem de estar preparado para isto e as pessoas também. Se até aqui alterar uma obra-prima era um crime de lesa-majestade, o que fazer agora quando as mesmas se alteram ou degradam sem uma solução que não coloque em causa a própria obra. Veja-se o exemplo de Nam June Paik. Faleceu recentemente, mas imaginemos que nesta obra "Cello with Charlotte Moorman ", e ainda durante a vida do artista, um dos televisores avariava. E que a marca que o produzia faliu, que já não havia mais nenhum em stock. Visto cada televisor ter o seu desenho próprio (e que o televisor avariado deveria ter as suas marcas que seriam uma mais valia para o conjunto da obra) a substituição deste televisor por outro de marca diferente iria adulterar a obra. Ou não? Mesmo que tal passasse despercebido aos olhos do público, como apresentar a obra assim? O que eram os técnicos do museu? Assistentes de uma loja de electrodomésticos?

Nam June Paik
TV. Cello with Charlotte Moorman
1971

Mas eis outro caso; o "La Salle blanche" de Marcel Broodthaers, uma sala com paredes de madeira trabalhada e cobertas de inscrições. Quando esta obra era emprestada a outros museus (encontra-se no Centro Georges-Pompidou) corria-se o risco de durante o transporte a peça ficar mais riscada. Era assim como acrescentar um risco a um quadro de Pollock. Mais risco menos risco, quem daria pela diferença? Mas ele estava lá, gravado na madeira, não fruto de vandalismo, mas das condições de existência da peça. Por isso o Centro tem uma réplica da obra, só para estes empréstimos, o que nos faz pensar: se alguém é capaz de reproduzir a obra, então ela passa a ser produto e não obra de arte. Pode ter um número de série e sair de uma linha de produção e ser vendido a preços acessíveis. Numa exposição de pintura num velhinho museu, quando um quadro é emprestado para outra exposição ou quando está em restauro, o seu lugar está vazio, apenas com a indicação de que se encontra emprestado ou em restauro. Não passaria pela cabeça de nenhum director de museu mandar fazer uma réplica do quadro. E mesmo percebendo o que leva um director a mandar fazer uma cópia da divisão da casa em questão, com todos os seus pormenores, não consigo deixar de pensar se isso não ultrapassa os limites da arte (que no meu caso levam quase a um romantismo bacoco porque a originalidade constante e a unicidade não existem).

Marcel Broodthaers
La Salle blanche
1975

O exemplo de Duane Hanson é até caricato. Conhecido pelas suas figuras em tamanho e forma bem reais e humanas a desempenhar tarefas também elas muito prosaicas, conhecido pelo Hiperrealismo das suas obras e por uma certa crítica social à sociedade de consumo Duane criou a Supermarket Lady que se exime de apresentações. Quando nos anos 90 foi necessário restaurar a obra, o conservador do Ludwig Forum d'Aix-la-Chapelle tentou restaurar a obra até ao seu estado original; ou seja, pretendia que esta tivesse o mesmo aspecto que tinha em 1970, quando foi criada. Neste caso foi o próprio artista que deu indicações para que o restauro fosse feito substituindo os produtos do carrinho, não pelos mesmos produtos, pelas mesmas marcas, mas por marcas actuais. Neste caso o artista viu a obra degradar-se mas preferiu recriá-la, o que até nem tem nada de mal, não fosse o seu sentido ficar subvertido, uma vez que era uma crítica à sociedade dos anos 60 e 70. Não há dúvidas de que a actualização da obra faria dela, igualmente, uma obra... actual, mas já não seria a mesma coisa. Poderia ter o mesmo nome que a primeira obra? e como explicar que a primeira obra deu origem à segunda quando a isso geralmente associamos a destruição e não a construção.

Duane Hanson
Supermarket Lady
1969

Por fim, apresento o exemplo mais estranho e aquele que motivou o post, uma vez que a razão da sua existência é essa: colocar "em água a cabeça" dos museus de arte contemporânea, visto que é uma obra viva. Trata-se de um "Sem título" de Giovanni Anselmo composto por dois blocos de granito, um maior e outro mais pequeno, sendo que este último se encontra legado ao outro por uma alface fresca e um fio de cobre (não me perguntem como, que ainda hoje estou para perceber como a obra "funciona"). Quando a alface murcha e seca, encolhe também o bloco de granito mais pequeno cai. Isto obriga a que o museu tenha sempre alfaces frescas diariamente ou de dois em dois dias. A vantagem desta obra é que nada é mais fácil de substituir do que uma alface porque se é orgânica, estava implícito que mais cedo ou mais tarde iria perecer e por isso teria de ser substituída. E as alfaces são todas iguais, isto desde que se substitua sempre por alfaces de folhas da mesma categoria. Neste caso a pertinência da obra é essa: é uma obra viva que se manifesta quando o que está vivo nela, morre e o que está morto, se mexe!

Giovanni Anselmo
Senza titolo1968

P.S. Nota-se, pela forma como os parágrafos vão diminuindo de tamanho, que devo ser o João Rolo dos posts.

3 Comments:

Blogger João Barbosa said...

hoje estamos muito contemporâneos. acho bem. também acho bem um oposto.
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gostei da boca do acrescentar um risco a um quadro de Pollock

6/10/08 12:35 da tarde  
Blogger AM said...

e temos também aquelas obras com uns tantos calhaus espalhados pelo chão ou com uma série de galhos secos amanhados não sei como... impossíveis de mexer sem perda da "aura"...
... se não se importar com a companhia, não se importa que a acompanhe no seu romantismo bacoco?...

6/10/08 10:15 da tarde  
Blogger Belogue said...

caro joão barbosa:
today i'm felling very... XX century. (pensava que era Valentino? não, é donna karan). não era bem uma boca. acho que era a verdade, mas não tenho nada contra a técnica; até aprecio muito a técnica embora haja represnetantes melhores que o pollock

Caro am:
ainda um dia destes estava a ver umas imagens disso. o que estará em questão, nesses casos, não é a aura (embora também ache que são coisas demasiado zen para o meu gosto).o que me parece mais importante é que mexidas, já são outra coisa. essa noção que falava e que acho triste de que as coisas verdadeiramente originais são irrepetíveis, leva-me a pensar que podemos estar perante Vanillas Ice de um só sucesso. retiradas do solo, ou afastadas, claro que perdem por não estarem no seu ambiente, mas nunca mais vão ficar iguais. ora diz-nos a teoria do caos que nada acontece de igual forma duas vezes e nem por isso cristalizamos os momentos. a arte avançará para algo próximo do niilismo. se estiver á vontade com o meu romantismo barroco, faça o favor de me acompanhar (à guitarra que eu vou cantar um fado).

9/10/08 12:30 da manhã  

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