- ars longa, vita brevis -
hipócrates
Lembram-se da Última Ceia de Leonardo da Vinci, quadro acerca do qual não se escreveu nenhum best-seller e que vive, com prazo de validade, no refeitório de Santa Maria delle Grazie, em Itália. Há pouco tempo foi alvo de obras, principalmente de limpeza e restauro pois a técnica com que foi pintado (fresco sobre reboco), mais as condições do local (muito húmido), condenaram-na a uma morte prematura. É um dos quadros mais famosos de Leonardo, não obstante o seu estado, e um dos quadros mais copiados e referidos quando se fala de Última Ceia. Última Ceia=Leonardo da Vinci.
A revista Gastronomica (que é muito interessante, já agora) dedicou um artigo nesta última edição, escrito por John Varriano que fazia descobertas no sentido do verdadeiro repasto da última ceia. Anda aqui uma pessoa a fazer abstinência, a pensar que os apóstolos e Jesus comeram peixe (se calhar nem sal tinha), com um pão seco e beberam um três marias (salvo seja!), ou que comeram um carneiro muito seco e velho, aquela carne rija a meter-se nos interstícios dos dentes e vem Leonardo dizer-nos que pelo menos na visão dele, aquela gente comeu outra coisa muito diferente e muito melhor. Nada nos Evangelhos nos indica o que comeram mesmo, mas sabe-se que pelas escrituras (Mateus 26, 15, 16) a Ceia foi à noite (naquela altura "tarde" correspondia a "noite": "E os discípulos fizeram como Jesus lhes ordenara, e prepararam a Páscoa./E, chegada a tarde, assentou-se à mesa com os doze.") Sabe-se também que a tradição dizia que na Ceia de Páscoa se comia pão ázimo (Marcos 14, 1): "E dali a dois dias era a Páscoa, e a festa dos pães ázimos; e os principais dos sacerdotes e os escribas buscavam como o prenderiam com dolo, e o matariam." E a Ceia decorreu num grande quarto já mobilado (Lucas 22, 12): "Então ele vos mostrará um grande cenáculo mobilado; aí fazei preparativos." Era natural que se pintasse o peixe na Última Ceia ou que se achasse que deveria estar presente pois o peixe é o símbolo codificado de Cristo que estava presente nas catacumbas do cristianismo primitivo, bem como num mosaico na Igreja de Santo Apolinário-o-Novo em Ravena. Quanto à qualidade do pão e do vinho, pouco se pode dizer, mas Leonardo que foi um dos responsáveis pela cozinha de Ludovico Sforza não era homem para se contentar com qualquer "mata-bicho".
Leonardo da Vinci
The Last Supper
1498
Convent of Santa Maria delle Grazie, Milão
Tudo começou em 1997 quando o fresco foi limpo e se descobriu que Leonardo pintou, não o que as escrituras vagamente diziam (pão, vinho, eventualmente peixe ou cordeiro), mas criou uma ementa própria do seu tempo. Não é nada que os outros artistas não tenham feito já, mas de uma forma mais comedida: peixe ou carne sim, mas também fruta, pão de muitas formas (só lá faltou o cacete), facas e colheres, cálices de reis e não de apóstolos, descuido destas áreas em favor dos estudos de anatomia e do estilo revivalista do Renascimento, enfim, uma cacofonia de menus e de estilos que não tornam a pintura mais elucidativa (como se alguém procurasse isso), mas também não destronaram a verdadeira Última Ceia que pertence a Leonardo na mesma medida em que pertence ao Próprio Cristo. Leonardo conseguiu juntar as três vertentes das tradicionais representações da última Ceia: o conceito espacial, a preocupação com a mesa e com a comida e as relações entre as personagens que deviam denunciar uma ceia e não um jantar com várias pessoas que não se conheciam. Agora a excelência na disposição espacial não é notória pois a inovadora técnica de Leonardo foi um fracasso tal, que flocos de reboco começaram a cair antes mesmo da pintura estar acabada em 1498. A Última Ceia atingiu tamanho estado de degradação que em 1901, Gabrielle D’Annunzio’s chegou a escrever uma ode intitulada “For the Death of a Masterpiece". Mas os paliativos (que mais não foram que aplicar produtos fixadores e retocar a pintura já existente) lá fizeram com que a mesma permanecesse até aos dias de hoje embora escondendo a verdadeira que como foi dito, ressurgiu aos olhos do público em 1997. Quando a pintura pôde ser finalmente apreciada notou-se que Leonardo tinha composto a mesa de uma forma que pouco tinha em comum com os evangelhos. Nela incluiu uma mesa composta por pratos de peltre (combinação de antimónio, cobre, chumbo e estanho), bem como facas, garrafas (tipo galheteiro) com água, copos de vinho para cada um, tigelas e dois saleiros, tudo isto em cima de uma toalha que após vários estudos se concluiu ter um tipo de padrão típico das indústrias têxteis italianas da época . Um dos saleiros referidos é especialmente importante pois está tombado e encontra-se muito perto de Judas.
Vamos agora ao mais importante; a comida. Antes de tudo, nunca é demais lembrar que Leonardo pintou, talvez mais do que outros artistas, segundo o seu conhecimento, não das sagradas escrituras, mas da cozinha e da física. Diz-se que Leonardo era vegetariano e que também era o tipo de pintor que não tinha qualquer espécie de incómodo em retratar-se nas suas obras, quer literalmente ou em sentido figurado. Era adepto daquilo que se chamava o "ogni pittore dipinge sé"; ou seja "todos os pintores se pintam a si mesmos". Numa carta de um viajante italiano à Índia, este descreve com muito carinho a forma como os indianos vivem, em comunhão com os animais, incapazes de comer uma coisa já tivesse estado viva e remata "tal como o nosso compatriota Leonardo da Vinci". No entanto, nas suas notas de cozinha, estão presentes inúmeros desenhos de máquinas de desossar e depenar animais, em sua casa os pupilos que ali aprendiam e que o serviam, comiam carne e peixe e as suas receitas incluíam carne. Logo é natural que mais dia, menos dia o pintor tenha ingerido um bom bife. Era também natural que não pintasse na mesa da última Ceia carne e que pintasse apenas peixe, mas estudos recentes mostram que Leonardo elaborou um pequeno repasto à sua moda, aos seus gostos tal como elaborava para Ludovico, e o colocou na mesa para os apóstolos. Na mesa Leonardo pintou três travessas e embora aquela que se encontra frente a Cristo esteja vazia, as outras duas, uma frente a André e a outra frente a Mateus (as quatro figuras a contar da direita e da esquerda respectivamente), contêm comida. A travessa mais à esquerda deve estar cheia de peixes, cerca de 6. Já a outra travessa está de tal forma danificada que é impossível adivinhar o que leva lá dentro. Há no entanto três pequenos pratos do lado esquerdo da composição, que não são pratos individuais, mas servem várias pessoas. Estudiosos, gastrónomos e certamente, apreciadores descortinaram o que estaria num desses pratos: postas de moreia grelhada com fatias de laranja (ah pois é, é para quem pode!). Na mesa há também peças de fruta, muito provavelmente romãs (fruto que está revestido de grande significado para cristãos e judeus), vinho e pão, que são no fundo, os elementos essenciais para o reconhecimento da Última Ceia como tal.
Não parece existir qualquer significado para a presença da moreia na mesa, uma vez que a tradição judaico cristã não refere nada relativamente a esse alimento que pode ser muito bom, mas que me dá vómitos só de olhar. O mais provável é esta inclusão ter sido obra e fruto da imaginação de Leonardo que incluia frequentemente a moreia nas suas receitas. E o facto de a incluir tantas vezes nas suas receitas deve-se à popularidade deste alimento durante o Renascimento, visto a moreia ser um animal que podia viver privado de água por vários dias e quando morto podia ser preservado em água salgada. As fatias de laranja junto à moreia devem ter sido populares neste período e Leonardo que lia livros de culinária, deverá ter ido buscar esta ideia a outros autores, tanto que no século XVI era já moda na cozinha italiana servir os pratos acompanhados com citrinos.
Deve ter sido certamente uma transubstanciação deliciosa, já que pelo menos o pão é substituído por outra iguaria. É também algo arrojado para a época, uma vez que as Últimas Ceias comissionadas durante este período tinham como destino geralmente os refeitórios de lugares de oração. Ora os frades e as freiras viviam, na maior parte dos casos em constante regime estóico que não permitia grandes repastos ou alegrias de qualquer espécie a não ser a divina. Este tipo de desenhos era um atentado para as pobres almas famintas que procuravam no alimento espiritual o material (não, não me enganei). E é também frequente, já notei, concentrar a cena da Última Ceia que deveria retratar acima de tudo o momento em que Cristo ergue o cálice e o pão, no momento em que o detractor de Cristo é denunciado. Num refeitório religioso já tão cheio das suas intrigas deveria ser um factor desestabilizador.
3 Comments:
ontem ao jantar lembrei-me de sim. no cardápio estava (a preços impossíveis, como não podia deixar de ser) o beluga do Irão.
.
.
.
achei que veio a propósito
só a beluga, para começar uma posta sobre a última ceia com a revista gastronomica
caro joão barbosa:
o que é bom paga-se caro! mas deixe estar... antes uma posta mirandesa do que xarope de sardinha
Caro am:
a revista era boa e o artigo também... tinha de postar sobre isso.
Enviar um comentário
<< Home