- o carteiro -
No seguimento do “ars longa, vita brevis” de há pouco, resolvi colocar este post sobre São Jerónimo, isto porque encontrei um quadro sobre o santo que é totalmente diferente das representações que já vimos dele. Quando olhamos para o quadro o que vemos é um homem de idade a ser flagelado por dois anjos jovens e robustos de caracóis loiros. Mais acima, numa nuvem que se abre e ilumina toda a cena, Cristo, a Virgem e alguns santos a tudo assistem e como num tribunal servem de juízes da cena. A luz vertical acentua o irrealismo do quadro, pois destaca o santo da terra firme, quase como se o elevasse do chão para o fazer ascender ao céu. Neste momento o santo está como que no limbo, entre o julgamento celeste e o julgamento os castigo terrestre. Mas porque razão, que força divina – porque só poderia ser uma força divina – impele estes santos que até costumam ser papudos a bater num homem indefeso. A resposta está, mais uma vez, na frequência com que cada um de nós foi às sessões de catequese. Esta situação de São Jerónimo, entre o céu e a terra, entre dois anjos malvados e um árbitro em Cristo, só podia ser fruto da imaginação do próprio santo. Na verdade, há uma parte da vida de São Jerónimo que não é contada muitas vezes e que fala de um sonho que o santo teve. São Jerónimo em novo teve um pesadelo numa noite de febre pois o santo tinha negligenciado – a sério! – os estudos religiosos, em favor dos textos clássicos como os textos de Platão e Cícero. Não sendo isso um pecado, era motivo suficiente para o próprio santo se sentir culpado. O santo do lado direito da pintura pisa uns livros; talvez fossem esses textos de autores clássicos que como dissemos num destes dias não eram incompatíveis com o ensino de textos bíblicos. Este quadro traz qualquer coisa de novo para a história da pintura pois não é costume ver um santo ser castigado pelo seu pecado; aliás, os santos são quase seres sem mácula e os que a têm nunca a vêem retratada. Vemos santos martirizados, vemos cenas da vida de santos, mas não vemos os seus pecados, também não vemos o fruto da sua imaginação, não os vemos por dentro nem acompanhamos os seus pensamentos como num sonho. Nada disso costuma acontecer. Este significado tão ortodoxo deve muito à doutrina e directivas da Contra-Reforma quando a Igreja Católica acusada de se colocar numa posição pouco respeitável e de subverter os princípios morais que a edificaram faz em certas áreas a contrição dos seus pecados e em outras, como a arte, acentua-os. Neste caso, ao mostrar o santo fundador da palavra escrita como um mortal que sonha, cria a empatia com os restantes católicos e mostra aos protestantes ser capaz de retratar com tanta humanidade quanto eles, os aspectos menos prosaicos da vida religiosa, toda ela pouquíssimo prosaica.
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