quarta-feira, agosto 27, 2008

- ars longa, vita brevis -
hipócrates
antes e depois ou "vocês bem sabem que não me canso de Caravaggio. Acho-o genial e não por causa da vida que teve, mas pela obra, por ser tão subversiva. Este São Jerónimo não é das minhas pinturas preferidas. Aparentemente não tem nada de especial, nada de subversivo, mas é uma figura muito querida de católicos e muito odiada por protestantes. São Jerónimo, um dos quatro doutores da Igreja (estatuto conseguido após a sua morte e que partilha com Santo Ambrósio, Santo Agostinho de Hipona e São Gregório Magno), foi quem traduziu para latim a versão grega do Antigo e do Novo Testamento, tarefa que lhe levou mais de 20 anos de vida. É conhecida por Vulgata pois estava escrita na língua mais utilizada na Igreja do Ocidente. É por isso uma figura importante para o Catolicismo. No entanto, para o Protestantismo, São Jerónimo foi uma pedra no sapato; ou melhor, foi quem colocou a pedra no sapato protestante uma vez que a Igreja Protestante tinha intenções de mandar traduzir a Bíblia para os idiomas locais onde o Protestantismo vigorava. Uma vez que os católicos faziam questão que se difundisse apenas a versão de São Jerónimo, durante muito tempo a discussão foi subindo de tom.
Caravaggio usou o mesmo modelo que havia usado para pintar Abraão e Mateus em outras obras. O quadro mistura no mesmo espaço e tempo vários episódios que a verdadeira história de São Mateus divide no espaço e no tempo. Caravaggio, bem como outros pintores, optou por retratar São Jerónimo na sua gruta, já idoso, a traduzir a Bíblia. Perto dele tem um dos seus atributos, a caveira e está coberto com as vestes encarnadas que lhe são próprias. Não há sinais do modelo de uma igreja (que simboliza o seu contributo para a Igreja) nem do leão (que alude a uma passagem da vida do santo, quando este no deserto retirou um espinho da pata de um leão, passagem esta que por sua vez tem ligação com a história romana de Audrocles). E mesmo que aparentemente o quadro não tenha nada de especial, ele está cheio de incoerências, ou teasers, como prefiro chamar-lhe, embora estes são estejam acessíveis a quem conhecer a história. Para tal é preciso ter ido às aulas de catequese!. Ora vamos lá ver: foi aos 19 anos de idade que São Jerónimo se retirou para o deserto sírio a fim de meditar e se tornar ermitã. Por isso não se compreende a razão de Caravaggio pintá-lo como um velho. Em segundo lugar, a tradução da Bíblia foi posterior a esse período de recolhimento e já em Roma, logo São Jerónimo não podia estar em local tão obscuro. E mesmo que dúvidas houvesse quanto ao local, sabe-se que São Jerónimo não estava assim tão velho quando fez a tradução. O crânio ali colocado é quase uma premonição da sua morte por estar tão próximo do crânio do próprio pintor. Por fim São Jerónimo apresenta as suas vestes encarnadas (e em alguns casos o chapéu de cardeal) próprias dos doutores da Igreja, mas a verdade é que quando o quadro foi pintado, esse “cargo” ainda não existia. Algo que também é assinalável é que Caravaggio pinta São Jerónimo como um velho, quando alguns modelos anteriores o pintavam como um escolástico jovem e saudável. Caravaggio pinta-o como um velho às portas da morte, com os seus músculos fracos e a pela muito branca exposta.
Até existe uma certa relação entre o quadro de Caravaggio e a fotografia do filme de Derek Jarman. Este artista, professor, poeta e realizador costuma filmar cenas de quadros com pequenos orçamentos opondo-se assim à máquina hollywoodesca, tal como Caravaggio se opôs aos modelos da época:"

Caravaggio
St Jerome
c. 1606
Galleria Borghese, Roma


Michael Gough
St Jerome
1986

Gallery, Londres

4 Comments:

Blogger AM said...

não há palavras para descrever a emoção de olhar para este caravaggio
a riqueza da composição cheia de linhas paralelas e perpendiculares, é quase infinita
é a "simetria" da caveira com a cabeça calva do santo
é a caveira que "olha" para a pena quase "abandonada" enquanto o santo olha para a página
é o "pele a pele" da carne do braço com a "carne" do livro
um génio é isto

27/8/08 1:29 da manhã  
Blogger Belogue said...

Caro AM:
está oficialmente inscrito no nosso clube de "Loucos pelo Cara". E disse a coisa certa: é que há uma ligação entre um crânio morto e o crânio em fim de vida do santo. No fundo é como se o pintor estivesse a dizer: "tudo é morte (da esquerda à direita), mas só a palavra de Deus te pode salvar e sobreviver à morte física do corpo". Não é o meu Caravaggio preferido. A "morte da Virgem", a "Fuga do Egipto", o "anjo a ditar o Evangelho a São Mateus" e claro, a Medusa. Parece que não mas a Medusa é uma pintura muito especial porque mostra o momento entre a morte e a vida. A pintura está a morrer à nossa frente assim como Dorian Grey envelhecia no quadro. Mas enfim, é uma opinião.

27/8/08 3:07 da manhã  
Blogger AM said...

obg, beluga
aceito a "inscrição" (smile)
aquele braço... com ponto de "rotação" no cotovelo... traça um arco de circunferência "invisível" entre os dois "crânios"
e saber pintar o invisível não é para todos...

27/8/08 12:38 da tarde  
Blogger Belogue said...

está muito espirituoso. deve ser influência da espiritualidade do Caravaggio

28/8/08 3:39 da manhã  

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