sexta-feira, julho 18, 2008

- ars longa, vita brevis -
hipócrates
- Nome.
- José Marto.
- Idade.
- 38 anos
- Data de nascimento.
- Dou-lhe o Bilhete de Identidade que é mais fácil.
- Não pedi o Bilhete de Identidade, pedi a data de nascimento. Data de Nascimento?
- … Vinte e três de Maio de 1964.
- …
- …
- Não tenho o seu nome no sistema.
- Não?
- Não. Diz aqui que não se registou.
- Como assim?
- Quando um candidato entra tem de tirar uma senha. Ali. Depois tem de se dirigir para aquela fila. Ali. E por fim fica registado.
- E isso quer dizer o quê? Já não é a primeira vez que venho cá e há sempre uma novidade!
- São as ordens que temos. Porta, senha, balcão um, registo, balcão dois que é este, tempo de espera, atendimento em um dos balcões três, quatro ou cinco se se tratar de pedidos e candidaturas e seis se se tratar de casos especiais como idas para o estrangeiro. Como pode ver, o balcão seis está vazio, ninguém vai para o estrangeiro, o que quer dizer que o sistema funciona.
- Então talvez fosse melhor fazerem uns manuais…
- Escusa de falar assim, nós estamos cá para fazer o nosso trabalho. E também estou cansada que já tenho 60 anos. Acha que é fácil ver as regras mudar quase todas as semanas?
- Não parece muito afectada. Adaptou-se bem?
- Sim. Já estamos habituados à polivalência.
- Polivalência é um vocábulo… polivalente!
- Está a ver aquele casal?
- Sim. Aquele com o carrinho de bebé?
- Sim. Todas as quintas feiras estão aqui. Chegam às duas da tarde e só saem quando já não há mais ninguém com quem falar.
- Vêm cá para falar com outras pessoas?
- Sim. E sabe uma coisa? Já conhecem as regras.
- Vêm cá para falar com outras pessoas?!
- Está surdo homem?! Já lhe disse que sim. Sabe que esta situação é complicada e eles gostam de trocar umas palavras com as pessoas que estão como eles.
- Que decadência!
- Ou altruísmo.
- Ou desemprego.
- Não diria melhor.
- Mas isso é quase um trabalho. Podiam empregá-los aqui.
- Infelizmente não podemos empregar ninguém aqui.
- Nem em lado nenhum.
- Quase. Ainda não chegamos aí.
- Pois…
- Pois…
- E agora o que é que eu faço?
- Agora, vai ter de sair e voltar a entrar.
- Então porquê? Não posso simplesmente dar-lhe os meus dados como estava a fazer e a senhora coloca-me em espera para ser atendido num dos outros balcões? Vou ter de tirar uma senha agora? Já viu o que me espera?
- Reclamações são no balcão sete, que como vê, está vazio. Aqui ninguém reclama.
- Quer saber porquê?
- Eu já sei, mas diga-me.
- “A cavalo dado não se olha o dente”, é por isso.
- Nem o serviço é cavalo, nem pode ser avaliado pelo dente.
- “Quem dá o que tem a mais não é obrigado.”
- Não dou nada meu, o Estado é que dá.
- E o Estado sou eu, já sei. Mas também é a senhora.
- O Estado é mais eu do que o jovem.
- Porquê? Não serei eu cidadão?
- Não se demore meu rapaz. Segundo as minhas contas estamos há dez minutos nisto. Cada pessoa só tem direito a quinze minutos. São regras.
- Tenho então de tirar outra senha!
- Tem de sair e tirar outra senha.
- Sair?
- Sim, desde que chegou aqui, e já lá vão dez minutos, que para nós, você não existe.
- Não existo? Mas se estou aqui a falar consigo e tenho o Bilhete de Identidade…
- Não lhe pedi o Bilhete de Identidade, pedi-lhe que saia.
- Oh Cristo! Só me faltava esta!
- Acalme-se Mariazinha!
- Hã?
- Não adianta portar-se como uma menina. Eu explico: quando entra, o sistema desliga-o do computador central que está no Ministério que por sua vez está ligado ao computador central que está no Governo. Durante estes dez minutos o senhor nunca teve uma consulta no médico, nunca pagou uma portagem, nunca fez um levantamento bancário, nunca trabalhou, nunca foi remunerado pelo seu trabalho, nunca pagou impostos, nunca descontou… Nunca nada, percebe. Quando se entra aqui é como se se entrasse para uma lavagem: começa-se de novo. Por isso, neste momento em que o senhor já não existe há… onze minutos, o Estado sou eu e quem está aqui dentro ou saiu daqui de dentro ou até, quem nunca entrou. Quem fica entre a entrada e a máquina das senhas, não existe.
- Espere aí, mas isso não faz sentido.
- Segundo as nossas regras, faz.
- Mas as regras são mudadas quase todos os meses, a senhora disse-me!
- Eu não disse isso. Para que conste, eu não digo nada que possa afectar directa ou indirectamente a minha permanência aqui até aos 65 anos.
- Mas a senhora disse-me!
- Talvez, por outras palavras.
- Disse-me que também para si não era fácil ver as regras mudar todas as semanas.
- Sim, parece-me razoável e não sancionável.
- O quê?
- Eu ter dito isso.
- Porquê? Poderia ser sancionável dizer alguma coisa?
- Não, teoricamente. Mas se sim, seria sancionável dizer que sim.
- Ouça, percebo que não queira comprometer-se, mas concorda comigo que este sistema está errado.
- Para si talvez sim, para mim que só faltam cinco anos, até está bem. É um sistema simpático.
- Isso não é sancionável, presumo.
- O quê?
- Dizer que o sistema é simpático.
- O sistema sabe que é simpático. O sistema não poderia ser outra coisa. Se o conforta, muitas pessoas que entram aqui também ficam cinco, dez minutos sem existir.
- Mas para quê isso? É um sistema maquiavélico, cheio de truques…
- Ora, isso não é simpático.
- É sancionável.
- É sancionável, e se eu não lhe disser “isso não é simpático”, também é sancionável.
- Esta conversa é surreal!
- Sabe como é… Polivalência!
- Explique-me apenas, se não for sancionável e se tiver explicação: para quê tudo isto?
- Comunicação social!
- Comunicação Social?
- Comunicação Social. A cada cinco, dez minutos está a fazer um levantamento dos inscritos e candidatos para depois colocar nas parangonas.
- Mas eu pensava que isso era informação confidencial.
- E é.
- É confidencial e a Comunicação Social sabe.
- Mais ou menos.
- Ou sabe ou não sabe.
- O senhor também sabia que devia tirar uma senha ou não sabia?
- Não imaginei que isto tivesse esta cadência.
- A Comunicação Social também não sabe. Quer dizer, ao aceder ao sistema do Governo fica a saber números instantâneos e não permanentes.
-Mas isso é enganar a Comunicação Social.
- Que por sua vez o engana a si. E mesmo que não estivesse enganada, enganava-o igualmente porque é assim que as coisas funcionam.
- Que coisas?
- Ora “que coisas”! As coisas. É assim que se diz. Quando alguma coisa não corre bem ou não há legislação sobre o que estou a dizer, eu ou uma das minhas colegas, diz-se “as coisas são assim”.
-São regras?
- Não, é a vida.
- Mas utilizar esse termo é pouco profissional.
- Estamos autorizadas.
- Pelo Governo?
- O Governo tem as suas “coisas”. Directivas internas. Alguma auto recriação, mas ninguém nos pode culpar por querermos agilizar o sistema.
- Polivalência.
- Está a apanhar-lhe o jeito.
- Para quê agilizar se o sistema já está anquisolado desde que eu ou outra pessoa qualquer entra aqui. O que é que ganha com isso?
- Monetariamente falando, nada.
- E sem ser monetariamente?
- Também nada.
- … É uma pessoa dedicada à sua actividade, gosta de trabalhar?
- Não. Mas se isso me permite ter uma classificação melhor no fim do ano, tenho de “agilizar”.
- É um bocadinho sancionável dizer isso!
- O quê?
- Que não gosta de trabalhar.
- Eu não disse que não gostava de trabalhar. Gosto é do dinheiro ao fim do mês.
- Então é tudo uma questão de números.
- Não é sempre tudo uma questão de números? Por exemplo, neste momento não existe há onze minutos, se se levantar e for tirar a senha, é-lhe atribuído o número 35 que como pode ver, pelos números no relógio aqui atrás, é um número para amanhã.
- Amanhã? Se tirar uma senha tenho de vir cá amanhã? Não pode “agilizar” isso?
- Não. Só agilizo daquela linha no chão para aqui, até às janelas. Tudo isto é da minha jurisdição, salvo seja que quem manda mais é o Ministério e acima dele, o Estado todo.
- Eu portanto.
- Não, eu. Estamos há doze minutos na conversa, o senhor não existe há doze minutos e já sabe que até amanhã não vai existir.
- Pedir-lhe um tempo extra, horas extraordinárias seria demasiada polivalência, não é? Nunca ninguém aqui faz horas extraordinárias?
- Portaria 15/A diz o seguinte, e passo a ler: “horas extraordinárias correspondem a despesas extraordinárias do Estado. A menos que a função em causa se venha a provar extraordinária, nenhuma função dita extraordinária será reembolsada. O estado desaconselha as horas extraordinárias, mesmo as pró bono.”
- Que dia Cristo!
- Completamente de acordo. Felizmente faltam três números para fechá-lo.
- Fechar-me?
- Não a si, ao dia. Todos os dias atendemos 55 pessoas.
- Mesmo que ainda falte tempo para acabar o expediente?
- “Expediente”, muito bem! Já sabe os termos técnicos. Sim, mesmo que falte ainda muito ou pouco tempo para acabar o ex-pe-di-en-te!
- Porquê?
- Porque é assim. 55 pessoas por dia, nem mais, nem menos. Mais seria agilizar demais o sistema e menos seria…
- O despedimento?
- Repetidamente? Sim.
- Quer dizer que o sistema não pode ser mais agilizado? Ninguém pode trabalhar mais do que aquilo que está previsto?
- Não!
- Porquê?
- Ouça, o balcão de informações é ali. E sabe porque é que está vazio? Porque ninguém quer ser informado, ninguém quer saber se eu atendo 55 pessoas ou não. É assim!
- Mas eu quero.
- Puff… Então lá vai: ninguém atende mais de 55 pessoas por dia porque isso implicaria que o serviço teria outro ritmo…
- Sim…
- Que implicaria que não seriam necessárias tantas pessoas para fazer o mesmo serviço porque o mesmo far-se-ia com menor número, o que implicaria despedimentos, o que implicaria mais gente desempregada, o que implicaria mais gente insatisfeita e nas ruas a manifestar-se, o que implicaria mais gente informada, o que implicaria maior contestação ao Governo, o que implicaria a queda do Governo, o que implicaria mudança de Governo, o que implicaria mudança das regras.
- …
- Compreendeu?
- Abalado, mas esclarecido. Isso são coisas que vos dizem, ou é a polivalência?
- Um bocadinho de cada.
- Caramba!
- …
- …
- …
- Diga-me só: acha que há alguma coisa para mim?
- Há tanto para si como para os outros. Não sei, não o conheço, senhor José Morto.
- Marto, José Marto.
- Pois bem. Há quanto tempo está nessa situação?
- Há quase três anos?!
- É crónico, portanto?
- A mim não me dói nada e aquelas dores de barriga vão e vêm e nunca se soube o que era, mas isso nunca…
- É crónico, quer dizer, é permanente, é para manter.
- Não, não. Eu vim cá porque não quero manter a situação.
- E onde andou durante este tempo em que não veio cá?
- A ver se me arranjava por outro lado. O serviço aqui não tem boa reputação.
- Vamos lá ver se a gente se entende: na minha rua há uma casa de meninas que também não tem boa reputação e toda a gente que lá vai, vem satisfeita. Ninguém reclama.
- Como aqui, no balcão seis, não é?
- Não. O balcão seis é para candidaturas para o estrangeiro. Como o balcão sete.
- A senhora confunde-me! Isto é tudo muito estranho.
- Isso porque ainda não viveu até aos sessenta. Dentro da minha jurisdição as conversas são sempre assim.
- Porque será?!
- Por causa…
- Da sua polivalência!
- Muito bem! Ora bem, se não vem cá há um ano, é provável que o Estado o deixe mais um ano sem nada.
- Porquê?
- Porque estaria, ao dar-lhe de imediato uma oportunidade, a subverter as regras de mercado.
- Mais regras? Que regras são essas agora?
- As regras da empregabilidade dizem que quem chega primeiro é quem tem direito.
- Mas se assim fosse aquele casal já tinha saído daqui. E o trabalho não é um direito universal?
- Se fosse assim tão universal, este Centro não existia, eu não existia, aquele casal não existia…
- Tenho pena por si, mas seria muito melhor.
- E por eles?
- Também, também.
- Não se preocupe. Não os ter em linha de conta não é sancionável.
- Não gosta deles?
- Eles estão numa área que não é da minha jurisdição.
- E se estivessem aqui?
- A Alice da padaria não lhes dava o almoço, o segurança não lhes dava boleia para casa e eu não lhes daria o jantar.
- Ah quer dizer, eles continuam aqui…
- Eles continuam vivos, diga antes assim…
- Eles continuam vivos porque as pessoas são simpáticas.
- Não, simpático é o sistema.
- Pois. Tenho de me lembrar disso.
- Eles continuam vivos porque não estão na minha jurisdição.
- A senhora leva isso muito a sério!
- Faltam cinco anos, não posso correr o risco de correrem comigo.
- Eu pensava que tinha algum poder aqui.
- Pensar isso é vaidade. Ninguém pode sobre nada, nem mesmo sobre a própria vida. Por exemplo, o seu tempo esgotou-se. Vá para casa, deite-se e não faça nada. Até amanhã, você não existe.
- Parto, então.
- Não era Marto?

2 Comments:

Blogger João Barbosa said...

se tem 38 anos não nasceu em 1964, mas em 1970... ou a estória tem anos?

18/7/08 10:39 da manhã  
Blogger Belogue said...

"Este país não é para novos", cap.I, pág 1-4

Caro João Barbosa:
A data de nascimento não era muito importante, mas deveria ser por estes anos.

19/7/08 1:13 da manhã  

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