quinta-feira, julho 17, 2008

- o carteiro -


Francisco Goya
The Dog
1820-1823
Museo del Prado, Madrid

Este quadro de Goya, que não conhecia é delicioso. O tipo de pintura que vemos á das chamadas “Pinturas Negras” do artista habitualmente pintadas em murais, mas que Goya concebeu para uma parede da Quinta del Sordo, uma casa de campo perto de Madrid que ele acabou por adquirir em 1820. Já sabíamos que Goya era capaz de muito, mas este quadro é uma revelação, uma vez que não é comum na sua pintura o estilo tão despojado. Não apenas minimal porque desse ponto de vista alguns retratos seus poderiam ser considerados minimais. É despojado pois não tem nada excepto o cão, que nem sequer surge nem cenário em que o possamos identificar como tal, nem foi pintado de “corpo” inteiro. É apenas o focinho de um cão, não muito definido que parece assustado. A pintura encontra-se hoje, como se pode ver pela legenda, no Museu do Prado e a casa em si já não existe, foi demolida. “O Cão” quase levava o mesmo caminho uma vez que a sua superfície parece estar desbotada e em muito mau estado, o que infelizmente só aumenta o desespero em que o animal se encontra.

A composição está dividida em duas partes: na parte superior que ocupa quase a totalidade da obra é inteiramente constituída por um amarelo/dourado, e a parte inferior, que ocupa menos espaço e faz um aligeira curva, é bastante mais escura. Embora com cores que não se aproximam das tradicionais, podemos dizer que a parte superior corresponde ao céu e a inferior à terra. Na parte superior destaca-se também do lado direito do cão aquilo que parece ser uma figura humana, levemente sugerida a amarelo mais escuro. Mas como não há certezas sobre a origem da figura (se seria intencional, se é apenas uma mancha fruto dos vários tratamentos a que a obra foi submetida, se é o resto de uma pintura que ali existia anteriormente…), o melhor é esquecermos essa mancha até porque em algumas reproduções ela aparece mais viva do que noutras.

Independentemente do que nos possam dizer as manchas de cor que representam o céu e a terra, há dois factos cruciais na pintura. Um deles é a percepção que temos da pintura por inteiro e que nos permite ver até às suas margens, ao contrário das pinturas ataviadas em que só reparamos no centro. O facto de a mancha mais escura se elevar pode-nos indicar estarmos perante uma paisagem. O outro facto é que o ratio entre a área amarela e a área mais escura não é favorável a esta última. Isto é no entanto intencional pois este tipo de desproporção cria tensão e confere dramatismo à cena. Vejamos que o que quer que existe na parte em desvantagem, está,… em desvantagem porque parece estar a cair, está a descer e como não há um figurativismo assumido na mancha castanha, o cão pode não estar numa paisagem mas num precipício, numa vertigem constante. E para acentuar isto, note-se que o que está por cima, em proporção muito maior, acaba por oprimir o que está em baixo.

Quanto ao cão, que nos leva a pensar que estamos perante um cenário de paisagem – pois não fosse ele e diríamos estar perante uma pintura abstracta -, encontra-se na obscuridade da parte inferior da pintura e apenas o seu focinho assoma. Embora não seja muito perceptível no tamanho apresentado aqui no Belogue, o cão tem o olhar mais perdido e ansioso que se pode imaginar e está orientado para o local onde a mancha escura atinge o ponto mais alto da curva, incapaz de se mover do local onde foi parar ou onde o colocaram. O cão parece esperar ajuda que, segundo a orientação do focinho vinha daquele lado, mas nem um pé que denuncie e presença de alguém, nem uma mão que o puxe ali se encontram. E como apenas lhe vemos o focinho, julgamo-lo incapaz de andar pela sua própria pata, sem vontade e atribuímos-lhe também um dorso mais pequeno, menos robusto do que aquilo que poderíamos atribuir não fosse a presença das duas manchas de cor.

Seja como for é uma pintura que fala de esperança perdida e de dor não mitigada: não há esperança nem pode haver na parte superior do quadro cuja imensidão esmaga a inferior, não há esperança na inferior de onde surge o cão pois esta é escura e fria e serve para esconder o corpo do animal e não há esperança no lado direito da pintura de onde não surgiu nem parece vir surgir ninguém. A pintura discute-se entre o Céu e o Inferno e o cão é apenas o elemento apanhado nesse diálogo.

3 Comments:

Blogger João Barbosa said...

cuidava que a Beluga não gostava de Goya... ou não gosta de El Greco e estou a fazer confusão?

17/7/08 11:20 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Por acaso acho muito mais interessante o nome dado ao quadro em língua espanhola: "perro semihundido; remete-nos mais depressa para a importância que a figura do cão irá mais tarde vir ter no movimento surrealista. Isto claor sou eu a pensar alto.

17/7/08 4:53 da tarde  
Blogger Belogue said...

caro joão barbosa:
a beluga gosta de goya e eu também. e gostamos de um outro que está no seguimento de Goya, mas que é muito subestimado: Daumier. Não gostamos mesmo e como disse, de El Greco. só de ouvir o nome, fico arrepiada.

Caro anónimo:
Compreendo o que diz, mas não sei se uma coisa está encadeada com a outra porque entre Goya e Dali muitos pintores e movimentos surgiram. E por toda a arte, em todos os países, antes e depois de Goya, o cão foi elemento importante. (repare nos quadros do post de hoje sobre os casais. em dois deles surge um cão). Por outro lado, qual foi a importância que o cão teve no movimento surrealista? Deu nome a um filme? (não sei, não me lembro de nenhuma outra referência ao cão no surrealismo).Talvez até possa ter sido uma influência para o surrealismo espanhol, não digo que não porque não especialista, mas a pintura é tão pouco conhecida que fico com dúvidas. Quanto a pensar alto, está no local para isso. para pensar baixo já basta o resto do dia.

18/7/08 4:10 da manhã  

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