quinta-feira, janeiro 24, 2008

- ars longa, vita brevis -
hipócrates
Tinha para mim que Caravaggio era um dos poucos artistas que não fazia versões de pinturas próprias. Nem de pinturas de outros. À excepção de “São Mateus e o Anjo”, do qual havia duas versões (uma delas foi destruída) por ordem do encomendador que não gostou da primeira por achar a temática com tratamento um tanto atrevido, todos os outros quadros de Caravaggio não têm remissão. E jamais (“jamais!”) pensaria em postar sobre a Última Ceia do pintor italiano pois para além de não simpatizar com Últimas Ceias, não achava que este fosse um quadro extraordinário de Caravaggio. Mas entre umas coisas e outras descobri que Caravaggio, no fim da vida pintou uma outra versão da sua Última Ceia. É esta que se segue e não tem metade da força da primeira, talvez como o homem que a pintou. Numa epifania de arrependimento ou por ordem do mecenas Ciriaco Mattei que encomendou da obra, o pintor retratou o episódio bíblico com um certo cansaço, desânimo; a falta de esperança!

Caravaggio
Supper at Emmaus
1606

Galleria Brera, Milão

A cena retrata o Evangelho de São Lucas (24: 13,32) e que entre outras coisas diz o seguinte “…Ele tomou o pão e abençoou-o, partiu-o e deu-o aos seus discípulos. Então, os seus olhos abriram-se e eles reconheceram-no”. O momento que Caravaggio pintou é esse, o momento em que os discípulos reunidos reconhecem Cristo. São Marcos dizia no seu evangelho que Cristo tinha aparecido aos discípulos “de outra forma”; ou seja, mais velho, mas Caravaggio não retrata Cristo da forma habitual, com barba própria da sua idade. Pinta-o antes como um jovem no meio de velhos, um ser imortal. É também um ser um pouco efeminado, como o pintor gostava de fazer, dando uma dimensão humana às suas pinturas mais sacras. Em seguida, Cristo desaparece. Portanto, o momento captado por Caravaggio é um momento místico, que só faz sentido para quem acredita na ressurreição de Cristo. Funciona quase como um instantâneo, algo que o pintor já tinha feito em outros quadros como por exemplo n’ “O sacrifício de Isaac”.

Caravaggio
Supper at Emmaus (pormenor)
1601-02
National Gallery, Londres

Por outro lado, para além de Cristo ter sido retratado como um jovem, o ênfase da cena não está colocado nele, mas na mão dele que se estende e aponta para a Natureza Morta em cima da mesa. Porque a Última Ceia de Caravaggio é uma natureza morta com gente viva. E com gente morta, se contarmos com Cristo, claro. Estão lá o pão e o vinho, símbolos da Eucaristia, mas também as aves e um cesto de frutas em alusão à efemeridade terrena. Há também um outro aspecto extremamente enfatizado, que está presente em quase todas as obras de Carvaggio, embora n’ “O Chamamento de São Mateus” seja mais notória a ligação a esta obra. É o efeito das luzes e das sombras que colocam em evidência o que é para ser realçado e remetem para a escuridão o que deve ficar no mistério, ou aquilo que deve apenas ser sugerido. A luz cai do canto superior esquerdo, ilumina a mesa e a personagem que está em pé. É a sombra dela que está projectada na parede e sabemos isso porque Cristo, como entidade imaterial, não podia ter sombra. A luz na pintura não é apenas iluminação, mas também alegoria da revelação. Mas tal como o momento da revelação é instantâneo, também acreditamos que esta luz é momentânea e se irá desvanecer em breve, bem como a fruta e o pão e tudo o que está na mesa e que representa essa perenidade da vida humana.

Os apóstolos parecem agricultores com as suas mãos grossas, as roupas de enjeitados, os dedos sujos, as faces sulcadas pelas rugas que vêm com o sol, são homens normais, como acontecia quase sempre com os modelos de Caravaggio. O apóstolo que está de costas (Cleofas, o único dos três que pode ser reconhecido por a Bíblia referir o seu nome) para o observador mete as mãos à cadeira naquele no preciso instante em que percebe o que se passa e procura nos braços da cadeira uma mola para se levantar. A todo o momento a cadeira vai sair pelo quadro na nossa direcção. O apóstolo que usa uma concha no peito não é Santiago, mas antes uma personagem que representa os peregrinos, uma vez que a Ceia se realiza em Emaús, uma das localidades para onde os discípulos estavam a viajar. A forma tão ampla como abre os braços também nos faz crer que a mão esquerda do apóstolo vai perfurar o quadro. De pé estaria o estalajadeiro, que se apresenta com uma indumentária diferente dos presentes.

Caravaggio
Supper at Emmaus (pormenor)

1601-02
National Gallery, Londres
Deverá ter sido um Caravaggio muito apagado e talvez desesperançado aquele que pintou a segunda Última Ceia. A composição não é muito diferente, mas há mais uma personagem que deverá ser a mulher do estalajadeiro e na mesa só pão e vinho. A luz não anda em elipse, Cristo tem barba e está cansado, baixa os olhos, os apóstolos não se surpreendem, as cores são apagadas, nada é mistério, apenas penumbra, preocupação e tristeza.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

o quadro foi substituido e não destruído por ordem do encomendador (penso que da fase de nápoles). de facto neste momento não existe mais, foi destruído, se não me engano durante a segunda guerra mundial.
poderá(s) encontrar a fotografia a preto e branco e comparar a brutal diferença entre os dois no livro História da Arte do Gombrich.

gostei do blog. é porreiro pá!

LR

28/1/08 1:57 da tarde  

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