quinta-feira, novembro 22, 2007

- o carteiro -

A Estação de Saint Lazare, perpetuada por Monet permanence, pelo menos pelo que parece, na mesma. Vi a pintura e vi as imagens. Na pintura, pela limitação e caracaterísticas da técnica, o movimento não entra. Ontem, e já há vários dias ninguém entrava ou o movimento era tão reduzido que, não fosse o metal da pintura, o nevoeiro, uma patine do tempo, e diríamos que Saint Lazare nunca tinha saído do sítio. Nem do tempo. A greve francesa que vai de um sector ao outro da sociedade, alguns com mais razões para reclamar que outros, paralisou, dizem alguns meios de comunicação social, a França.

Monet
Saint-Lazare Station
1877
National Gallery, Londres

Quanto ao Eduardo, paralisou por completo. Tal como os franceses foi-se garantindo à sombra da juventude e da crença enraizada e até cultivada que a morte viria cedo, talvez provocada como Chatertton (envenenamento com arsénico) e Mário de Sá-Carneiro (tiro no meio da testa) ou talvez fruto da genética e se assim fosse melhor porque era dado a Proust (bronquite) e a Oscar Wilde (meningite). Morar em Paris até tinha o seu charme na estetização total que era a sua vida: não fútil, mas sempre bonita. Excepto no que à saúde diz respeito: partiu a mesma perna várias vezes como Lautrec e com facilidade, apanhava constipações que habitavam o organismo por vários meses, tinha uma desgostosa queda de cabelo que lhe levava a auto estima. Operou-se num médico francês que depois da operação lhe deu um lenço de griffe para ir para casa com o novo couro de cabelo aconchegado. Era fiel aos seus princípios, aos seus valores morais e era isso que nos ligava. As articulações que deviam ligar os ossos estavam, essas sim, sem valores, em muito mau estado. Falava.-se de feitiço, de mau olhado, de mandar talhar o ar, de fotografias cobertas com areia fervida, de galinhas que vomitavam rolos de cabelo verde. Falava-se de uma bactéria e falou-se, esta semana de um cancro. Ele era demasiado novo para qualquer uma dessas coisas, pensávamos nós, aqui. Mas como não parar o pensamento se toda a França pára a actividade? Ele dizia que tinha vivido pouco, e tinha. Não empunhava bandeiras, não reclamava salários nem continuidade de regalias ad infinitum. O Eduardo estava parado, o seu corpo fazia greves frequentes e os amigos temiam o pior: o Eduardo sem ar nos pulmões deitado num canapé com o lábio roxo. Nada de cartas nem avisos que isso é exactamente para quem ainda não certificou a sua crença no fim de um sofrimento e se agarra à possibilidade de Deus.
O Eduardo soube da notícia e agarrou-se à possibilidade do cancro. Ou à possibilidade da cura do mesmo, conforme os seus dias. Havia uns em que acordava e ficava a apreciar as dores nas articulações enquanto lá em baixo passavam farrapos de grupos para mais uma manifestação que “eclodia espontaneamente” sempre que a televisão aparecia. Outros em que acordava e ficava a pensar no que tinha de fazer antes de morrer. O Eduardo que gostava de homens via lá em baixo, enquanto fazia a check list para os tempos futuros com alguma displicência uma vez que não sabia se iria querer aguentar mais maleitas da cura, dois jovens que para a televisão e em nome de uma França unida recriavam “O beijo” de Alfred Eisenstadt, para logo depois se separarem e nunca mais o verem.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

é tarde.
é duplamente tarde: aqui em Paris e no belogue!
acabei de ler este texto, publicado ja ha alguns dias e não obstante os factos reais se misturarem com alguma ficção, não pude deixar de ficar de pele arrepiada quando me revi na fidedignidade e na tragicidade de alguns deles!
o vazio que me povoa alastrou-se ainda mais e por alguns momentos fiquei literalmente paralisado como no seu texto.
A consciência amputada nestes ultimos tempos foi novamente acordada por um olhar distante e imparcial.
Os fantasmas continuam a povoar-me, a dor também..os exames sucedem-se,o desânimo vai aumentando e as desilusões vão-se tatuando no corpo e no olhar vitreo das memorias.
odeio este corpo e a sua fragilidade.sinto-me perdido e longe, mas ao contrario dos seus/meus herois românticos ainda não me sinto pronto para dizer adeus.


P.S.Fico muito contente e lisongeado por saber que pensa em mim.

26/11/07 12:20 da manhã  

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