segunda-feira, outubro 08, 2007

- o carteiro -
há caramelos da Penha, daqueles que se colam aos dentes, para os 3 primeiros lugares
Em 1921, antes de ter sido ocupado pelas forças nazis e de ter servido como armazém para o saque de obras de arte de famílias coleccionadoras, de preferência judeus para a humilhação ser maior, o Museu Jeu de Paume recebeu uma exposição de pintura holandesa. Proust situou no tempo e no espaço a morte de uma das suas personagens, o escritor Bergotte, frente à Vista de Delft de Vermeer presente nessa mesma exposição. Diz-se que Vermeer pintou este quadro utilizando um telescópio invertido. Ao contrário da camera obscura este instrumento permitia-lhe diminuir as figuras do primeiro plano, enfatizá-lo e obter uma visão geral e com a mesma vibração de luz da paisagem. Deixo o extracto e desafio (quem tiver tido a paciência de ler o post) a descobrir esse “pano amarelo”.

Vermeer
View of Delft
1659-60

Mauritshuis, The Hague

“Morreu nas circunstâncias seguintes. Devido a uma crise de uremia bastante ligeira tinham-lhe previsto repouso. Mas como um crítico havia escrito que na Vista de Delft, de Vermeer (emprestado pelo Museu de Haia para uma exposição holandesa), quadro que ele adorava e julgava conhecer muito bem, havia um pano de parede (de que ele não se recordava) tão bem pintado que, visto em separado, era como uma preciosa obra de arte chinesa, de uma beleza que se bastaria a si mesma, Bergotte comeu umas batatas, saiu e entrou na exposição. Logo aos primeiros degraus que teve de transpor foi acometido de tonturas. Passou diante de vários quadros e sentiu a impressão da secura e da inutilidade de uma arte tão artificial e que não valia as correntes de ar e de sol de um palazzo de Veneza ou de uma simples casa à beira-mar. Chegou enfim diante do Vermeer, que recordava mais resplandecente, mais diferente de tudo o que conhecia, mas no qual, graças ao artigo crítico, reparou pela primeira vez numas figurinhas de azul, na areia que era cor-de-rosa e, enfim, na preciosa matéria do pequeníssimo fragmento de parede amarela. As suas tonturas aumentavam; como uma criança atrás de uma borboleta amarela que quer apanhar, não tirava os olhos do pequeno e precioso pano de parede. “Era assim que eu devia ter escrito”, dizia. “Os meus últimos livros são demasiado secos, devia ter aplicado diversas camadas de tinta, devia ter feito com que a minha frase fosse preciosa em si mesma, como este pequenino fragmento de parede amarela.” Entretanto não lhe escapava a gravidade das suas tonturas. Numa celeste balança aparecia-lhe, em cima de um dos pratos, a sua própria vida, enquanto o outro continha o pequeno fragmento de parede tão bem pintado de amarelo. Sentia que imprudentemente trocara a primeira pelo segundo. “E, no entanto”, pensou, “não queria ser para os jornais da tarde a notícia sem importância desta exposição.”

Repetia de si para si:” Pequeno pano de parede amarela com um alpendre, pequeno pano de parede amarela.” Entretanto deixou-se cair num sofá circular; e de repente deixou também de pensar que a sua vida estava em jogo e, voltando ao optimismo, disse de si para si: “É uma simples indigestão causada por aquelas batatas malcozidas, isto não é nada.” Sofreu uma nova crise e rolou do sofá para o chão, e todos os visitantes e guardas vieram a correr. Estava morto.”
(Proust, Marcel, “Em Busca do Tempo Perdido, vol. V – A Prisioneira”, Relógio d’Água, pp 179-180.)