quinta-feira, outubro 04, 2007

- não vai mais vinho para essa mesa -

estava ali encostada à janela tal carochinha com cartão de crédito a ver os outros apartamentos: ali uma vizinha fala com a outra enquanto vai buscar a roupa ensopada e demora-se "ah, a vizinha viu o programa da Júlia Pinheiro?", "eu não vejo isso", "eu também não mas contou-me aquela senhora com quem vou fazer as caminhadas que..." (não sei, imagino eu), no outro apartamento um casal discute (impossível descobrir as causas, mas ela veste pijama aos ursos o que seria suficiente para ele sair de casa, ela diz que não está para aturar aquilo que ele passa muito tempo na internet e que anda a estranhar as mensagens para o telemóvel ele está no computador diz-lhe que não tem importância, ela está insuportável, deve estar com SPM, ela vira costas, ele faz um gesto de derrota com os braços ao longo do corpo, ela desliga-lhe a luz antes de sair (aquilo vai ser tramado esta noite), lá em baixo, não dá para ver bem, mas um senhor com as mãos nos bolsos passeia pela sala, limpa uma fotografia emoldurada em madre-pérola, diz para outra pessoa "isto está sujo, ela não limpa?", "lá dentro é a mesma coisa. pûs um paninho em cima da televisão e o pano está preto. ela sem sequer deve passar o espanador por lá", "já foste buscar as minhas calças à lavandaria?", "não, ainda estou a arranjar a bainha. vai-me ao quartinho de passar a ferro e de cima do armário da minha mãe traz a tesoura grande", "a tesoura grande? mas a tesoura grande não está aí, está dentro da cristaleira.", "dentro da cristaleira?", "sim, coloquei-a lá porque o Diogo é reguila e já sabes como é..", "ah pois é, um dia destes perguntou-me que casa era aquela que eu tinha em cima da mesa de jantar. tu sabes, a última ceia", "sim", "e eu disse que era a casa de Jesus", "e ele?", "ele perguntou se eles ainda demoravam muito porque estava com fome", "é levado do diabo o miúdo", "se é! despe as calças para ver se a bainha está bem" (não sei, imagino eu), lá em cima está um homem que fuma e que olha para mim porque somos cúmplices do mesmo exercício de observação. alguém o chama, ele larga a beata num cinzeiro que está ali na varanda, vai para dentro, uns braços rodeiam-lhe o pescoço, dizem "vamos lá para dentro?", "vamos" (não sei, imagino eu). Lá em baixo a água aumentou dentro do canal. Amanhã estará cá fora, virá a televisão, cada um chorará perda nenhuma porque o povo está habituado. Os homens que jogam às cartas no parque comentarão a bola, as senhoras que comem natas e lanches prensados na padaria falarão da novela e daquele casaquinho para o neto que está a ser feito em agulhas dois e meio porque a lã é muito grossa "quero-o assim para ficar quentinho", "faz bem dona josefina. e ainda vê?", "tudo! e ouvir? ouvir é que é tenho ouvidos de tísica. se soubesse o que eu ouvi ontem à noite no último andar do meu prédio" (não sei, imagino eu).