terça-feira, outubro 15, 2019

- o carteiro -

nas minhas últimas leituras ("últimas" é como quem diz, pois refiro-me a coisas que tenho lido, sem qualquer ordem ou objectivo no último ano, mas que por um feliz acaso convergiram, pelo menos na minha cabeça) notei que havia denominadores comuns... Percebi pois que tanto Robert Walser, como Guiseppe Corte (personagem do conto "Sete andares" de Dino Buzzati) e Hans Castrop (personagem principal do romance "A Montanha Mágica" de Thomas Mann) têm algo em comum. Talvez vindos de uma tradição/tendência/ideia de que tudo é tratável se abandonarmos por momentos o nosso ambiente (Mann já havia feito isso com Aschenbach em "A Morte em Veneza", para onde o compositor vai de forma a fugir do seu ennui, e também com uma das personagens de "Os Buddenbrook"), estes homens representam a Europa antes e após as guerras, ainda sem conhecimento das atrocidades cometidas aquando das mesmas e por isso, com uma certa crença na ciência, na medicina e na civilização. Todos acabam por se internar em casas de saúde de forma mais ou menos voluntária. Uma doença mental não incapacitante em Robert Walser, uma "ligeira e incipente doença" no caso de Giuseppe Corte e uma visita a um primo no caso de Hans Castrop levaram estes homens a abandonar o mundo e dirigirem-se, de forma voluntária, para locais isolados onde se mantiveram de livre vontade, mesmo quando os casos não exigiam tratamentos tão ortodoxos. Há diferenças entre as histórias de Walser, Corte e Castrop. A primeira é que Walser de facto existiu e os outros dois nomes são ficcionais. Walser morreu em Herisau, onde se encontrava internado, no decorrer de uma das suas caminhadas. Foi encontrado morto no dia 25 de Dezembro de 1956. A fotografia do seu corpo na neve, junto à vedação, é uma das mais bonitas que vi ultimamente. Não obstante a doença mental, Walser possuiu até ao fim dos seus dias capacidade de locomoção e eloquência. Corte interna-se voluntariamente no piso para doentes cuja patologia apresenta menos gravidade, mas contra a sua vontade - e num processo kafkiano e "damiãodegóisiano" - acaba por ser internato no sétimo piso, para doentes terminais, sem que nunca se sinta de facto doente e sem que lhe expliquem o porquê de estar a ser constantemente mudado para um piso acima face ao anterior. Neste caso, é como se a "pequena e incipiente doença" se tivesse voltado contra o incipiente doente. Já Castrop parece ter encontrado no sanatório e na "Montanha Mágica" a razão para se afastar do mundo, da família, das obrigações, encontrando assim uma espécie de novo significado para a vida. Não sei se se trata de uma joie de vivre, mas antes um propósito. Esse propósito é propósito nenhum. Em todos eles este propósito não é expeccional, não os leva a atitudes extremas. Walser aliás escreve no livro "Histórias de Berlim" uma frase que resume a sua postura: "Não será o mediano aquilo que é mais sólido e melhor? […] De nada me valem os dias ou semanas geniais, ou um Senhor Deus extraordinário". Estes foram homens que passaram pela vida sem alarido, sem atrair atenções, olhares. Homens que se limitaram a viver. Talvez partilhem com Juliano, o Apóstata, a máxima de que não há nada após a morte. Assim como não existíamos antes de nascer, não existiremos depois de morrer. E isso é de certa forma reconfortante porque nos permite viver tal como queremos (com o primeiro botão do colete sempre aberto, pois então), sem grandes e infundadas esperanças, cientes da não existência de propósito.