- o carteiro -
agora que passou a Páscoa e podemos voltar a comer carne, venho falar-vos dos malefícios da abstinência. Geralmente, quem se priva dos "prazeres da carne" (a comida, a bebida, os afectos...), acaba, mais cedo ou mais tarde, por dar asas aos mesmos, sem regra nem medida; ou seja, "quem nunca comeu melaço, quando come se lambuza". devemos por isso comer melaço - e o que mais nos aprouver - amiúde. Caso contrário, a abstinência prolongada, pode levar ao exagero. A menos que tenham um espírito tão estóico quanto o meu e aí sim, podem viver sem os prazeres do mundo. Mas veja-se o caso dos hoolingans no futebol: gente aparentemente normal, que faz o seu "nine-to-five", pais, mães, maridos e esposas com sexo marcado para as sextas à noite quando os miúdos vão para casa da avó, e que, ao fim-de-semana, perante umas cervejas, vêem-se logo em delírios megalómanos de domínio do desporto nacional e do outro. Bebessem eles umas cervejas mais a meio da semana, fizessem eles o amor quando lhe aprouvesse e aqueles espectáculos pouco edificantes não tinham lugar.
O mesmo acontece em relação à religião, penso eu. A minha experiência diz-me que quanto mais apertarmos o nosso freio por motivos religiosos, pior vai ser no dia em que nos libertarmos dele. No meu caso até foi melhor! Durante muito tempo achei que para ser uma boa cristã tinha de seguir os passos de Cristo: comer pouco, vestir de forma modesta, rezar, falar o estritamente necessário. Um dia, quando decidi alargar o cinto destas proibições, acabei por tirá-lo e deixei de rezar, voltei a comer e comecei a ter uma vida normal, dentro daquilo que pode ser considerada a normalidade.
Em todas as épocas houve quem tivesse levado tão a sério as proibições das suas religiões que acabou por cair no oposto, levando consigo dezenas - em alguns casos centenas - de seguidores para rituais que propunham exactamente o oposto daquilo que propõe qualquer religião: assassínio, tortura, violação, violência, infanticídio, parafilias várias... enfim, you name it. Ou seja, os princípios ascéticos muito estritos podem levar a uma revolta contra os mesmos ou, por outro lado, a uma confirmação ainda mais estrita destes. E algumas destas seitas tiveram origem nos primórdios do Cristianismo, quando o mesmo ainda estava a ser decidido na secretaria. Os Carpocratianos, seguidores das teorias heréticas de Carpócrates de Alexandria, defendiam, entre outras coisas, que a propriedade não era natural e por isso, homens e mulheres eram de todos. O sexo entre todos e com todos devia ser natural, uma vez que ninguém pertencia a ninguém. Foram assim uma das primeiras seitas a abolir o casamento, ainda que isto não resultasse de forma igual para homens e mulheres. Com a abolição do casamento as mulheres ficavam a pertencer a todos os homens, mas duvido que todos os homens ficassem à disposição de todas as mulheres. Na mesma altura os Paterniani ou Venustiani surgiram defendendo que a parte inferior do corpo humano havia sido criada pelo Diabo e que a parte superior, por Deus. Uma vez que os seus genitais eram propriedade do Demo, eles nada podiam fazer a não ser obedecer ao Demo e darem-se a todas as práticas sexuais com o mesmo empenho com que o cérebro se dava a Deus. (Os Severiani também acreditavam que o corpo humano havia sido criado em partes por duas entidades tão diferentes quanto Deus e o Diabo e até, que a líbido se localizava na parte inferior do corpo humano, mas lá conseguiram controlar o impulso sexual). No século X, em França, surgiram os Bogomilos, que embora não fossem originários de lá, se espalharam um pouco por toda a Europa. Havia um certo respeito pelos Bogomilos: tal como outras seitas, propunham o regresso a uma vida mais próxima da de Cristo e das Escrituras, principalmente no que diz respeito aos alimentos, ao culto de imagens e à oração. Mas diz-se que estes tinham uma prática pouco comum que em França granjeou vários adeptos: formar uma roda e atirar entre todos os membros da roda, uma criança que, mais cedo ou mais tarde, com tanto puxão e queda, acabava por morrer.
Já no século XIII a ideia de que tudo era permitido foi um pouco refinada através de uma seita chamada Begardos. Defendiam pois que um homem de fé não podia conspurcar-se de forma alguma. Mesmo que esse homem se desse a todas as perversões, a sua fé não permitia que isso o corrompesse. Já no século XIV quem brilhou a Ocidente foi Dulcinius da Lombardia, um padre que apareceu com a ideia de que a cristandade podia ser dividida em três teocracias: a primeira ia desde a formação do mundo até ao nascimento de Cristo (teocracia governada por Deus); a segunda, do nascimento de Cristo até cerca de 1300 (governada por Jesus) e a terceira, a partir de 1300 (governada par lui même! e na qual o sexo desbragado não constituía qualquer crime). Os dulcinistas podiam ser descompensados, mas eram descompensados em grande número: Dulcinius chegou a contar com cerca de 6.000 seguidores! Para além desta provocação com a questão sexual, os dulcinistas foram mais longe - daí o grande número de adeptos. Eles colocaram em causa a legitimidade do Papado ao afirmarem que viviam como os apóstolos: em total humildade e pobreza. Os seus actos só podiam ser julgados por alguém que vivesse como eles, o que não era o caso do Papa da altura, Clemente IV, que não esteve de modas e vai dai ordenou a sua captura e morte, na roda.
Muitas dessas seitas tiveram origem na Rússia onde no século XVII se deu uma cisão entre os cristãos mais ortodoxos e os menos ortodoxos. Houve um reafirmar do cristianismo ortodoxo que criou muitas inimizades. Com a subida de Pedro, O Grande ao poder, a antiga ordem, mais próxima de Roma foi reposta, mas houve quem sentisse que a Rússia se estava a vender. Foi nesses "enclaves" ideológicos que floresceram ideias cada vez mais opostas a tudo o que fosse ditado pelo Vaticano. Havia pois o Chisleniki cujo líder, Taxas Maxim, era um simples camponês com uma capacidade de estabelecer silogismos que convenciam qualquer um. Diz pois Taxas Maxim aos seus seguidores a fim de convencê-los: "Os homens devem ser salvos do pecado. Mas, se não pecarem, não podem ser salvos. Por conseguinte, o pecado é o primeiro passo no caminho da salvação". [1] Foi igualmente na Rússia que no século XIV se criou uma das formas de contornar as regras religiosas mais criativas. Os Lothardi achavam que podiam existir dois comportamentos aparentemente opostos ainda que ambos de acordo com a religião. À superfície a moral religiosa era a que prevalecia, mas cerca de 1,40metros abaixo do solo (aproximadamente três elles), todas as licenciosidades eram permitidas. Reuniam-se em subterrâneos, minas, túneis e nesses locais, fora do radar do olho divino, praticavam flagelação, assassínio e suicídio, entre outras práticas. Mais recentemente, e ainda activos na Rússia estão os Pryguny / Skakuny, uma versão actualizada do que propunham os Begardos na Alemanha no século XIII e deles próprios, já que os Pryguny vêm dos Molokan, uma seita oriunda do século XII. Parece-me que os Prynguny de hoje são muito diferentes dos Molokan de outrora, mas ainda assim verifica-se que casam e copulam entre si (não se abrem a outras comunidades, clãs ou seitas) e por isso é natural que em algumas regiões com menos número de membros as relações consanguíneas sejam comuns.
(continua)
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