- o carteiro -
um destes dias tive a possibilidade de ver um quadro do artista Frans van Mieris, the Elder. Chamava-se "The Doctor's visit" e dele a legenda dizia que retratava uma mulher muito pálida, a desfalecer, que, segundo o médico, sofria de "lovesickness" por demasiada leitura do Antigo Testamento!acho que não há uma tradução oficial para esta palavra. o que de melhor me ocorre é "mal de amor".
Jan Steen
Love Sickness
1660
Alte Pinakothek, Munique
Ao que parece, o mal de amor era mesmo considerado uma doença, como o provam as primeiras referências a esses casos. dou aqui duas:
- Plutarco escreveu nas "Vidas" que no século IV a.C. o físico romano Erasístrato de Chio foi chamado à cabeceira do príncipe Antíoco. Quando lá chegou viu o jovem fraco e pálido, como que a morrer sem razão aparente. Entra entretanto no quarto a madrasta do jovem, Estratonice (que é um lindo nome!) e o jovem recupera as cores, o batimento cardíaco acelera. Erasístrato percebe então que o príncipe tem um mal de amor e está apaixonado pela própria madrasta. aconselha então o rei Seleucus a entregar a esposa ao filho.
- Galeno descobriu de que doença padecia a mulher de Justo, um romano abastado, quando lhe tomou o pulso e sentiu as pulsações a aumentarem de ritmo sempre que ouvia o nome de Pílades, um esbelto bailarino.
A explicação médica é/era simples: o amor pode não ser correspondido e quando isso acontece a pessoa que o sente desenvolve uma tristeza e melancolia que levam à produção da bílis negra, um dos quatro humores do corpo humano. Convém porém distinguir o mal de amor da erotomania.
Até aqui, e face a estes dois exemplos, estamos empatados; ou seja, tanto homens como mulheres podem padecer de lovesickness, de um "mal de amor". hoje achamos que homens e mulheres sofrem da mesma forma. Melhor: achamos que o sentimento é o mesmo para os dois géneros, embora a forma de ultrapassá-lo e de lidar com ele possa ser diferente. Mas altura houve em que os sintomas de "mal de amor" (falta de apetite, ruborizar, passividade, distracção, ritmo cardíaco acelerado - sintoma só considerado pelos médicos no século XIII -, mudanças de humor, etc...) indicavam doenças diferentes em mulheres e homens. Nas mulheres os sintomas do "mal de amor" eram quase sempre uma expressão do seu histerismo latente. Dependentes dos maridos, educadas para procriar, obedecer, cozinhar, sem rendimentos próprios, a maior parte delas sonhava com os heróis dos romances de cavalaria e, mais tarde, da literatura de cordel. Por isso, o seu "mal de amor" era desconsiderado e elas, infantilizadas. Ou isso, ou sofriam de lovesickness devido à leitura excessiva do Antigo Testamento. De facto, no Cântico dos Cânticos encontramos isto:
"Sustentem-me com bolos de passas,/fortaleçam-me com maçãs,/porque eu desfaleço de amor." (Cap. 1, Ver. 5)
e isto:
"Eu vos conjuro, mulheres de Jerusalém:/se encontrardes o meu amado,/sabeis o que dizer-lhe?/Que eu desfaleço de amor." (Cap. 5, Ver. 8)
Claro que, tanto numa passagem como na outra o "desfalecer de amor" se dá em referência à alma que espera Deus. Isto lembra-me algo, não sei se terá razão de ser, mas "bós" ajuizareis: as Madalenas penitentes que se olham ao espelho. Será que elas não têm aquele ar tristonho e melancólico porque leram os escritos de Margarida de Oingt? Ao que parece, no século XIII, XIV que foi quando viveu, Margarida de Oingt escreveu o seguinte:
''The inside of this book was like a beautiful mirror, [ ... ] In this book appeared
a delightful place, so large that the entire world seems small by comparison". Para além disso este livro mostrava o corpo de Cristo, um corpo "so noble that one could see
oneself reflected in it, more clearly than in a mirror". Será que uma coisa e outra estão ligadas. Será que este livro circulava, primeiro entre religiosas e depois entre o mais comum dos homens, no século XVI. Estive a ver e de facto não há - tanto quanto sei, atenção! - Madalenas penitentes de espelho à frente, antes do século XIII.
The Penitent Magdalen
1638-43
Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque
Já nos homens a causa para todos estes sintomas é o amor heróico, muito diferente do amor erótico. O amor heróico só era sentido por homens nobres e ricos. Quase nunca por homens de baixa condição e nunca por mulheres. Estas podiam ser, quando muito, prescritas aos homens apaixonados. Vejamos o conselho médico de Pedro de Espanha, nascido, por caso em Portugal:
"Sed in cura amoris hereos applicantur emplastra vel mulieres ad testiculos" (isto é qualquer coisa como "para curar o amor heróico, aplicar emplastros e mulheres nos testículos). vemos que a mulher é comparada a uma panaceia o que denuncia um pensamento androcentrado. Vemos também que o amor, ou a cura para o mal de amor, deve ser feita no sexo. e de facto, onde se sente o mal de amor? é na cabeça, no coração ou no sexo (neste caso, nos testículos)? Os médicos e filósofos tendiam a localizar esta "doença" no cérebro dos homens ricos e poderosos (claro), já que o cérebro estava no topo deste trio, ficando por isso acima do coração e do sexo. Os homens menos abastados sentiam a sua doença no pénis e testículos e as mulheres, no útero. Ora como o útero é interno, a ideia de que tudo não passava de histerismo no caso feminino, ganhava força, já que aquilo que não se vê, não se compreende e por isso não se explica.
Para além do coito com mulheres (mais o menos o mesmo que hoje dizemos de substituir a sarna de cão pelo pêlo de outro cão), eram aconselhados os banhos, vinho, boa comida, música, poesia, desporto, viagens. Para as mulheres que sofriam de mal de amor, é criado mais tarde, penso que no século XVII, três curas: o clister, o vrouwenspuit (pulverização da vagina com uma seringa, também entendido como uma forma de massagem masturbatória), ou o coito em contexto de casamento.
Acho que era Platão que dizia (ele não diz nada, os outros é que dizem) que nós procuramos a outra metade porque de facto nascemos redondos como laranjas: com duas cabeças, quatro pernas, quatro braços, quatro pés... E existíamos em versão: homem-homem, homem-mulher e mulher-mulher. Quando os deuses nos dividiram, devido à nossa ambição de os suplantarmos, nós ficámos pelo mundo, perdidos, à procura da nossa metade. e quando achamos que a encontramos e ela não corresponde aos nossos anseios, ficamos "lovesicknesses". mas como o amor não se prende com aquilo que queremos receber do ser que amamos, mas com aquilo que queremos dar, esta doença não faz, aparentemente, sentido. é que apesar da nossa necessidade de encontrarmos o amor vir, em grande parte, da Revolução Francesa e da importância do indivíduo que ela promove, a verdade é que tem muito pouco de racional
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