- o carteiro -
isto também podia ser um "antes e depois". ora bem... o que é que eu vos trago?... hoje trago literatura. só para dar um ar de inteligente. e trago dois livros de que gosto muito e que vocês também deviam gostar. um deles (o "antes") é do Flaubert: Madame Bovary que é de facto um monumento. E o filme do Claude Chabrol é muito bonito, muito bem apanhado: o baile, a cena em que ela morre, a parte em que corre pelo jardim, a forma como os figurinos mostram o estado em que ela se encontra... é muito bom. Há uma parte no livro em que o narrador descreve um relógio da seguinte forma:
..."e na estreita consola da lareira resplandecia um relógio com uma cabeça de Hipócrates, entre dois castiçais de casquinha, com globos de forma oval." (FLAUBERT, Gustave - Madame Bovary. Amadora: Ediclube, 1995, pág. 34)
mais à frente:
"De que tinham falado, enquanto ele se aquecera em chaminés de largo lintel, entre jarras de flores e relógios Pompadour?" (IDEM, ibidem, pág. 60)
O primeiro relógio é da casa de Carlos e Ema. O segundo é o que ela imagina que o seu amante está a ver enquanto ela naquela terriola espera que ele venha e que a leve dali. No fundo, como a Luísa d' "O Primo Basílio" de Eça.
Mas eis que surge Camilo, que é para mim um dos símbolos do romantismo português, ainda que Camilo não seja, não tenha sido exclusivamente romântico, já que escreveu alguns romances realistas no fim da sua vida. Os romances de Camilo e os contos são, como já deu para perceber, muito breves. Tão breves que não conseguimos aquela empatia com as personagens como sentimos com as do Eça. Isto acontecia porque Camilo preferia contar as suas histórias, assim a modos que in media res; ou seja, quando a ação já ia a meio. E isto acontecia em parte devido a uma certa estratégia do autor. É que ele foi dos primeiros autores a viver da escrita. Aquilo que ele produz é para ser consumido logo: é para o burguês que lê o jornal todos os dias porque se quer manter informado acerca daquilo que se passa no mundo, e para a burguesa que lê os jornais do marido e que através deles aumenta a sua parca alfabetização para depois proceder à alfabetização dos filhos em casa. É que enquanto a mulher nobre apenas os paria, a mulher burguesa também os educava. Por isso Camilo não tinha mãos a medir. Mas nos últimos anos de vida Camilo aproxima-se do Realismo que estava na moda. Para ele foi de facto um desafio. Na dedicatória de um destes livros, "Eusébio Macário", Camilo diz que escreve um romance com "todos os tiques do estilo realista". E ao fazê-lo, neste romance, ele vai mesmo buscar determinados elementos e hiperboliza-os. Assim, o "Eusébio Macário" começa com o exagero de um recurso dos realistas - a descrição . Trata-se de uma descrição de um relógio que vai ser uma paródia à descrição dos dois relógios da Madame Bovary. Então cá vai:
"Havia na botica um relógio de parede, nacional, datado de 1781, feito de grandes toros de carvalho e muita ferraria. Os pesos, quando subiam, rangiam o estridor de um picar de amarras das velhas naus. Dava-se-lhe corda como quem tira um balde da cisterna. Por debaixo da triplicada cornija do mostrador havia uma medalha com uma dama cor de laranja, vestida de vermelhão, decotada, com uma romeira e uma pescoceira, crassa e grossa de vaca barrosã, penteada à Pompadour, com uma réstia de pedras brancas a enastrar-lhe as tranças. Cada olho era maior que a boca, de um vermelho de ginja. Ela tinha a mão esquerda escorrida no regaço, com os dedos engelhados e aduncos como um pé de perua morta; o braço direito estava no ar, hirto, com um ramalho de flores que parecia uma vassoura de hidrângeas. Este relógio badalara três horas, que soaram ríspidas como as pancadas vibrantes, cavas, das caldeiras da Hécate de Shakespeare." (BRANCO, Camilo Castelo - Eusébio Macário. [s.l.]: Ulisseia, s.d., pág. 43)
Durmam bem e não façam xixi na cama que o tempo não está para secar.
4 Comments:
com essa coisa da lareira e do relógio fui dar (outra vez) à pintura do Magritte
tem toda a razão.
só não percebi o "outra vez". sabe que magritte é uma coisa que não me diz muito. acho que aquilo roça o azeiteiro. desculpe. se calhar gosta do magritte, mas olhe, o que é que quer... já com a "ilha dos mortos" do arnold böcklin foi a mesma coisa.
mas tem razão. acho que é a isto que se chama uma ekfrase invertida (sabe que ando a ter aulas com uma antiga ministra da cultura e agora estou muuuuito culta! estou a brincar).
a opinião, para a posteridade (e mais além...) do ODP:
http://odesproposito.blogspot.pt/2007/07/trans-fixe.html
antónio, deixo-lhe um presente no post de hoje. estive a magrittar.
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