segunda-feira, outubro 10, 2011

- o carteiro -

(chiça, vocês não sabem o que custou postar isto por causa da formatação)

estava a pensar "cácomigo", assim mesmo tudo junto para ser bem forte, do "nuórte", quando percebi que esta gente da teogonia, para além de partilhar o gosto por cópulas estranhas (precursores da zoofilia, ah pois é) e por nascimentos estranhos (gente a nascer da cabeça, a nascer de ovos de humanos...), gostava de, once in a while, mudar de género, quer fosse a sério, ou só de brincadeirinha, como dizem que os homens fazem no carnaval quando se vestem de mulher (eu "cácomigo", acho que os homens se vestem de mulher porque querem ver, querem estar na pele de uma mulher. acho que eles dão largas ao seu lado feminino - lado que todos os homens possuem e vice versa -, e que no seu dia-a-dia, por imposições sociais não revelam, blá blá blá, blá blá blá). bom, não vou fazer nenhum manifesto feminista. cada um veste-se como quer. mas na mitologia clássica isto era evidente. deixo aqui alguns exemplos sendo que apenas para o último não encontrei outra fonte que não o dicionário de mitologia. todos os outros estão justificados com a bibliografia referenciada. como disse, não vou fazer nenhum estudo feminista, só vou dizer que, tal como nós os deuses e os heróis, mudavam de género, disfarçavam-se sem nenhuma preocupação, mas voltavam sempre ao original. pelo menos os da antiguidade clássica. e isto é estranho porque os deuses gregos e romanos tinham comportamentos humanos, mas como deuses tinham determinadas prerrogativas; ou seja, podiam trair e ser traídos, podiam ser cruéis, ludibriados, rudes, feios... não importava. porque eles podiam! mas por outro lado, este regresso tão imediato à forma inicial, faz-me crer que os deuses davam o exemplo à Hélade, não deixando que o indivíduo se sobrepusesse ao grupo, à nação.

Tirésias

"Acordam então averiguar qual a opinião/do douto Tirésias. É que este conhecia os dois lados do amor./De facto, em certa ocasião sovara duas enormes serpentes,/que acasalavam na erva verdejante, a golpes do seu bastão./De homem convertera-se em mulher (espantoso!), e passara/sete Outonos assim. Ao oitavo, viu de novo aquelas serpentes./'Se tão grande é o poder da pancada com que vos feri', disse,/'a ponto de mudar no contrário o sexo de quem vos golpeou,/bater-vos-ei também agora'. Golpeando as mesmas serpentes,/retornou à forma primitiva e a figura com que nascera voltou." (OVÍDIO - Metamorfoses. Lisboa: Livros Cotovia, 2007. pág.93)

Atena

"E Atena veio até ele, sob o aspecto de um adolescente, um pastorinho, muito gentil, como costumavam ser os filhos dos príncipes; ela tinha sobre os ombros uma dupla e fina capa; sob os seus pés reluzentes sandálias, e na mão um cajado." (HOMERO - Odisseia. Mem Martins: Edições Europa-América, 2000. Pág. 146)

Baco

(Penteu voltando-se para Tirésias e falando de Baco): “…Os outros que vão à cidade procurar a pista do estrangeiro efeminado, que vem trazer esta nova doença às mulheres e contamina os seus leitos.” (EURÍPIDES – As Bacantes. Lisboa: Edições 70, [s.d.]. Pág.53). Baco tinha seguidoras, as Bacantes.

William-Adolphe Bouguereau, Bacchante, 1894

Aquiles

Aquiles era filho da ninfa do mar Tétis e do mortal Peleu. Aquiles era ainda adolescente quando rebentou a guerra de Tróia, mas a adivinha Calcas, depois de consultada, informou que a cidade inimiga não seria destruída se Aquiles não participasse no confronto. Apavorada, Tétis tratou de disfarçar o seu filho de mulher e enviou-o para a corte do rei Licomedes, na ilha de Ciros, para que ele fosse educado no harém, junto das princesas e com o nome de Pirra (a loura) [Pirra é um bom nome para uma prostituta. “Onde vais?”, “Esta noite combinei com a Pirra!”]. Entretanto os gregos enviaram Ulisses como embaixador à corte de Peleu a fim de que ele trouxesse Aquiles, mas como não o encontrou, Ulisses recorreu a Calcas que lhe revelou o embuste. Ulisses disfarçou-se então de mercador e dirigiu-se ao Palácio de Ciros, conseguindo entrar no gineceu. Aí expôs, perante os olhos maravilhados das princesas, os mais ricos adornos. Mas entre os tecidos e as jóias estava escondida uma espada. Enquanto as mulheres se interessavam pelos bordados, a pretensa Pirra empunhou a espada imediatamente, precipitando-se para fora do palácio com a arma na mão revelando a sua verdadeira identidade.

Nicolas Poussin, Aquiles e as filhas de Licomedes, 1656, Museu de Belas-Artes, Boston

Zeus

Zeus era o deus dos deuses, deus dos fenómenos atmosféricos e pai do Panteão. Até ele porém estava sujeito aos decretos das parcas não ficando assim acima da lei. Calisto, cujo nome significa “a mais bela”, era uma ninfa da Arcádia e companhia predileta de Artémis, deusa da caça. Tal como Artémis, também Calisto estava votada a uma vida sem a companhia masculina. Um dia Zeus viu Calisto nos bosques e desejou-a de imediato. Sabendo que a ninfa fugiria assim que ele se aproximasse, Zeus disfarçou-se de Artémis e abordou-a. Conversaram, riram e abraçaram-se. Quando Calisto se apercebeu da verdadeira identidade, intenção e natureza da sua nova amiga, tentou resistir, mas Zeus subjugou-a (que é como quem diz, violou-a). Entretanto Calisto soube que estava grávida, mas envergonhada tentou ocultar a gravidez de Artémis e das outras ninfas. Até que, 9 meses depois e forçada pelas companheiras a despir-se, a verdade revelou-se. Artémis ofendida por a ninfa quebrar o seu voto, expulsou-a. "Quando Júpiter a viu assim, cansada e indefesa, exclamou:/'Desta escapadela, ao menos, a minha esposa nada saberá./E se souber, vale a pena, oh! pois vale!, ouvir impropérios!'/De imediato, disfarça-se com a aparência e o trajar de Diana" (OVÍDIO - Metamorfoses. Lisboa: Livros Cotovia, 2007. pág.70)
Rubens, Júpiter e Calisto, 1610, Cassel

Hércules

Hércules era um mortal, filho de uma mortal (Alcmena) e de Zeus. Passou muitas provações nas quais demonstrou a sua força e capacidade de abnegação. Para além dos seus 12 trabalhos, Hércules também passou por uma situação em que mudou de género por razões que até hoje não são consensuais. Umas versões dizem que a rainha, admirada com as proezas de Hércules, deu-lhe a liberdade e casou com. Outras versões referem que a rainha estava apaixonada por Hércules e acedeu a passar o resto da sua vida no cativeiro do amado, sendo que ela usava a pele de leão e o bordão de Hércules e ele ficava aos pés da rainha a fiar linho. Uma terceira versão adianta que após a morte de Ífito por Hércules, Hermes levou o herói e vendeu-o à rainha Onfale da Lídia (versão esta que viria corroborar assim a primeira tese), viúva de Tmolo. Ao seu serviço Hércules fez um pouco de tudo: matou Syleus, derrotou inimigos de Onfale e submeteu-se à vergonha, como forma de punição pela morte de Ífito, de vestir-se como uma mulher.
Cranach, Heracles and Omphale, 1537, Braunschweig-Herzog Anton Ulrich Museum