terça-feira, maio 04, 2010

- ars longa, vita brevis -
hipócrates

antes e depois ou pequeno tratado por tratar acerca da existência deste "antes e depois" sem o meu conhecimento, como se as coisas só existissem pelo consentimento que eu lhes pudesse conferir. mas - há que dizê-lo com frontalidade - causou-me "espéce", saber que desde 1990 (uma década!) este serviço de chá existe e só hoje (ou por estes dias para não ser tão específica) o descobri. O meu objectivismo estético vindo de Platão, nega o subjectivismo Kantiano que diz que as coisas acontecem independentemente de nós. O retrato que Boucher - pintor das celulites juntamente com Rubens - fez de madame de Pompadour, a rameira da corte, é uma bela homenagem: faces rosadas, olhos grandes, peito assim assim, pele alva, cabelo claro... E sempre aquela maneira irritante de fazer repousar a mão num livro aberto, ou descansá-la com os dedos em pinça. E não pintou apenas esta, pintou várias. Diz-se que Boucher era um grande pintor, no sentido em que era com a mesma facilidade que pintava retratos, cenas mitológicas ou paisagens. Não conhecendo muito da sua obra, aquilo que conheço diz-me que ele, como pintor do rococó era de facto o "anti-natural". Apesar das suas "Madame de Pompadour" terem aquele ar de quem foi apanhada a ler, a repousar ou distraída a olhar para o dia de ontem, notamos que os retratos são altamente elaborados pois as personagens estão absortas, mas na sua melhor pose, o que não deixa de ser irritante.

Já Cindy Sherman, e mais uma vez, toma como arquétipo as belezas clássicas e substitui a obra de arte da época, realizada em tela e pigmento, por uma nova forma de arte que usa as pinturas (como no teatro japonês) e as poses antigas para acontecer. Ela e a fotografia são a arte. A atitude de paródia relativamente à arte dos "grandes mestres" é também uma pertinência da autora e esta pertinência é visível na falta de adequação entre o que vemos e aquilo que a nossa biblioteca visual guarda nos "consagrados". Cindy Sherman surge com o mesmo artificilialismo de Boucher, mas um artificialismo assumido pois além da personagem estar engonosamente distraída, a boca é falsa, os seios são grotescos... Nada nos indica que aquela mulher de peito à mostra possa ser outra que não uma "mulher da vida" ou que esta mulher esteja de facto a ler um livro. Aquilo que em Boucher é graciosidade, em Sherman é vulgaridade. Estou em crer que era também uma forma da artista questionar os paradigmas de beleza absoluta com os quais se cruza Kant. Sherman diz, ao contrário de Kant - talvez ela não o tenha feito propositadamente, mas em meu entender cruza-se com essa noção - que o belo absoluto e universal pode ser questionado tal como o gosto.

Eis-nos chegados ao serviço de porcelana feito por Cindy Sherman em homenagem a Madame Pompadour. Foi esta última quem mandou produzir um serviço de chá igual a este (ou este é que é igual ao anterior), em 1756. Nessa altura a cortesão fez-se retratar nas chávenas e nos pires tornando-se assim duplamente apetitosa! Cindy Sherman recuperou o serviço e mudou a imagem de Pompadour pela sua encenação da mesma. O serviço existe em várias cores - verde, amarelo, azul-escuro e cor de rosa - e numa edição limitada a 75 exemplares. A linha foi expandida para serviço de jantar e está à venda aqui. Agora vou para dentro que está frio:

François Boucher
Madame de Pompadour
1758
National Gallery of Scotland


Cindy Sherman
History Portraits
1989



Cindy Sherman
Madame de Pompadour (nee Poisson)
1990

5 Comments:

Blogger João Barbosa said...

diga-se, em abono da verdade, que estes dois trabalhos de Cindy são medonhos... o que não é mau. gosto que mexam comigo

4/5/10 6:19 da manhã  
Blogger alma said...

Beluga,
Admirável!
o Boucher e Cindy
dois bons malandros uns autênticos predadores
do pires (termo em desuso)

By the way não me importava de ter um serviço de chá da Sherman
(adoro ser pirosa)só hesitante na cor

4/5/10 9:16 da tarde  
Blogger Belogue said...

Caro João Barbosa:
Não gosto do primeiro da Cindy (o trabalho de e para feministas não me diz grande coisa, acho-o uma falsa questão). Já o segundo... Digamos que se eu tivesse a mansão Versace, gostaria de combinar a decoração da sala com um serviço de chá verde.

Cara Alma:
"predadores do pires" é o termo em desuso ou "pires" é o termo em desuso? (Acho que é "pires". Agora toda a gente diz "prato"). Eu mantenho a minha visão da mansão Versace - muito barroca, cheia de mármores e colunas e reposteiros e tudo coberto com uma layer dourada - com um serviço de chá Cindy Sherman verde.

4/5/10 11:44 da tarde  
Blogger alma said...

Beluga,
UM BIG SMILE sobre a casa versace ...!

pires/prato
pires/piroso

Boucher e Cindy são conscientes e conhecedores das fragilidades do gosto...

Depois de muito meditar quero o serviço amarelo

viu os vigaristas de bairro do Woody Allen?

5/5/10 11:49 da tarde  
Blogger Belogue said...

cara alma:
a casa versace é mesmo no limite entre o bom gosto e as casas da zona da Murtosa. Um bocadinho mais ou um bocadinho menos e o conjunto seria uma desilusão.

devo avisá-la que os serviços de chá também estão disponíveis em serviços de jantar.

E não vai acreditar, mas ainda hoje passei pelas "vigaristas de bairro" e disse: "alugas em outra altura". Acabei por não trazer, mas agora que fala nisso, amanhã vou lá buscar o filme.
Obrigada pela sugestão

6/5/10 12:23 da manhã  

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