terça-feira, maio 04, 2010

- o carteiro -

a chamar as "anas" pelos nomes…

“Boltaa e meia” tenho tendência a achar que já me esgotei em posts e que o Belogue já não é o que era e etc. Então empreendo a difícil tarefa de escrever sobre coisas que não interessam a ninguém, mas que me dão muito gosto descobrir. E já andava com a ideia de escrever sobre as anamorfoses na arte, pródigas no renascimento e no maneirismo por causa dos jogos de espelhos. Talvez não saibamos qual a anamorfose “artística” mais antiga, mas conhecemos as mais recentes: as pragas de powerpoints que nos enviam para o mail com desenhos no asfalto de um autor chamado Julian Beever. É bem verdade que se não nos veio esclarecer sobre as anamorfoses, veio pelo menos alertar para o facto de as mesmas existirem e de ser o nosso olhar que trai a nossa mente.

Julian Beever

Aquela que é talvez a primeira anamorfose na história da arte é a entasis dos gregos. Os gregos perceberam que o olho humano tem a tendência para distorcer o que vê, como por exemplo, a sensação que temos quando olhamos para o céu d que os aviões são pequenos. Se não fosse a certeza que temos de que são enormes, ficaríamos com essa opinião pois é o que o nosso olho nos diz. O mesmo se passa em relação a certas linhas: vemos as linhas horizontais, à distância com uma ligeira curvatura para baixo e as verticais paralelas com tendência para uma curvatura para dentro. Por isso os arquitectos gregos deformavam propositadamente as horizontais com uma curvatura para cima e as verticais ligeiramente abauladas. Tudo de modo a equilibrar o que o olho humano desequilibra.
Há dois tipos de anamorfose: a anamorfose oblíqua e a anamorfose catóptrica. A primeira refere-se à anamorfose que aqui tratamos, a que existe quando uma imagem é deformada puxando um dos seus extremos, enquanto a segunda pode ser vista através de num espelho cilíndrico. A anamorfose é no entanto diferente do Trompe l’oeil, uma vez que este simula um espaço não existe a partir do mesmo ponto de vista do espectador, enquanto a anamorfose só revela o desenho escondido à medida que o observador se move. Um dos exemplos mais conhecuidos de Trompe l’oeil na arte é o fresco de Andrea del Pozzo criado entre 1691 e 1694 para o teço da Igreja de Santo Inácio em Roma. Neste tecto ele simula uma cúpula gigantesca aberta para o céu e pela qual o santo referido ascende. Para além da igreja em si não possuir cúpula assim como não possuía qualquer abertura para o exterior, Pozzo dá ao visitante a ideia de que a igreja de Santo Inácio era um prodígio da arquitectura e da natureza. No entanto, esta imagem do teço da igreja só é verdadeiramente impressionante e credível quando o visitante se posiciona mesmo por baixo dela: aí sim é possível acreditar que a Igreja de Santo Inácio tem tudo aquilo que parece fazer crer. Pozzo dizia que uma vez que a perspectiva era uma falsificação da verdade, então o pintor/artista não estava obrigado a servir-se dela para retratar o real quando visto de qualquer ponto de vista, mas de apenas um. Isto queria dizer que o artista não estava obrigado à universalidade da solução e podia apenas satisfazer uma parte do total.

Andrea del Pozzo
Allegory of the Jesuits' Missionary Work
1691-94
Sant'Ignazio, Roma


Para além de outras anamorfoses que não sei onde estão, uma das primeiras a surgir – após o que foi descrito da Antiguidade – foi o “olho de Leonardo”; ou seja, uma imagem realizada por Leonardo da Vinci em 1485 que, vista de frente mais não é que um conjunto de riscos, um desenho abstracto, e que vista de lado, à medida que assumimos uma perspectiva mais oblíqua do retratado, se vai desenvolvendo como um olho. Leonardo, à semelhança dos seus colegas do Renascimento, foi testando as técnicas de perspectiva distorcendo e esticando as imagens que pretendia codificar. Este “olho de Leonardo” não tem nenhuma característica especial pois nada tem de hermético, excepto pelo facto de existir sem que dele nos apercebamos. É aliás isso que fascina na anamorfose: estar perante uma imagem sem qualquer significando ignorando que o significado inerente ao que vemos depende do ponto de vista.



Leonardo da Vinci
1485



As anamorfoses eram utilizadas pelos pintores e tinham dois propósitos: como eram codificadas as imagens poderiam esconder alguma mensagem política, herética ou erótica e por outro lado eram um desafio para o artista. Um dos exemplos de imagem codificada com propósitos políticos é este retrato do monarca inglês Carlos I, imagem muito divulgada entre os partidários do monarca que defendia o poder absoluto dos reis.

Baltrusaitis
Carlos I

Há exemplos mais tardios como o de Erhard Schon que em 1531 se dedicou a criar este enigmático painel. Schon foi um gravador aluno de Dürer. No mesmo, nada podemos vislumbrar quando olhamos de frente para a gravura. Mas assim que nos colocamos de lado podemos distinguir os rostos Fernando I, em cima e à esquerda, de Carlos V (à direita), Francisco I (em baixo à esquerda) e do papa Paulo III (em baixo à esquerda) cujos nomes conhecemos pois a inscrição encontra-se junto das figuras. Também de Schon chegou até nós esta imagem. Quando vista de frente apresenta à esquerda um casal no quarto. Apesar da imagem não ser particularmente explícita, também vemos que no lado esquerdo do quarto existe uma pequena seta preta que nos indica o local onde nos devemos posicionar para descobrir o que parecem uns riscos verticais do lado direito da imagem. Aí chegados, aproximados da superfície da imagem e junto à esquerda, deparamo-nos com o mesmo casal nu, numa imagem que só pode ser denunciadora de alguma actividade libidinosa (o casal está a masturbar-se) censurável ou caso contrário não estaria escondida.








Também por volta desta data, mais concretamente em 1642, Emmanuel Maignan pintou para uma parede em especial do mosteiro da Santissima Trinità dei Monti, em Roma um fresco que à primeira vista não é nada. Quando nos afastamos e colocamos mais à esquerda da parede, junto à porta ou até mais afastados dela, vemos uma imagem de São Francisco em agonia. A deformação ainda se torna mais notável se tivermos em conta que a parede é curva, o que não deve ter facilitado as coisas.


Emmanuel Maignan
São Francisco de Paula
1642
SS. Trinitá dei Monti, Roma

Mas a mais conhecida anamorfose é sem dúvida a de Hans Holbein: a famosa caveira de “Os Embaixadores” que esconde vários significados como a possível alusão à morte, à vanitas e ao nome dos Holbein: Holbein em alemão quer dizer “hollow bone”; ou seja, osso fantasma”. Este quadro esteve primeiramente exposto na escadaria do castelo de Jean de Dinteville, um dos retratados e assim a caveira poderia ser vista como tal, como uma caveira quando se descia ou subia as escadas.

Hans Holbein
Jean de Dinteville and Georges de Selve (The Ambassadors)
1533
National Gallery, Londres

6 Comments:

Blogger João Barbosa said...

finalmente percebi o que está ali no quadro de Holbein... já ganhei o dia! danke frau Beluga

4/5/10 6:23 da manhã  
Blogger alma said...

Excelente!
estupefacta e deliciada com as suas postas...
não percebi o que está no quadro do Holbein ...
mas ganhei o dia na mesma!
thanks miss beluga

4/5/10 9:24 da tarde  
Blogger Belogue said...

Caro João Barbosa:
foi priemira anamorfose que conheci. Conheci outras anas, mas como esta...(!). Achava que não dizia a "bota com a perdigota", mas após este post fiquei a perceber a ideia de Holbein. Se bem que é uma forma estranah de deixar assinatura. Gostava de dizer "ora, deixe-se disso", em alemão, mas não sei.

Cara Alma:
Eu também fico estupefacta com a quantidade de coisas que não sei. No quadro de Holbein, no chaão entre os dois "embaixadores" está uma imagem distorcida que é no fundo uma caveira, talvez alusiva ao nome Holbein.
You're welcome, Miss Soul

4/5/10 11:50 da tarde  
Blogger AM said...

não deve ter nada a ver (eu sou um leigo nisto), mas recordei-me da caveira do andy warhol

5/5/10 8:56 da tarde  
Blogger Belogue said...

Caro AM:
o AM é um "leigo nisto" e eu às vezes deixo de comentar no despropósito porque sou uma leiga naquilo. Não deixe de dizer aqui o que acha, até porque tem a sua parte de razão: tanto a caveira no quadro Holbein como a caveira do Warhol (não será do Hirst? Não me estou a lembrar da do Warhol) são uma forma de retratar uma natureza morta. Só que no caso do Holbein a anamorfose levanta mais especulações.

6/5/10 12:26 da manhã  
Blogger AM said...

é mesmo a caveira do Warhol
uma que faz uma sombra com o perfil de uma cabeça de bebé...
podem dizer o que quiserem, que o Warhol é fútil, mau pintor e tudo, mas esse quadro, depois de visto, nunca mais me abandonou...
recorda-me a sequência final do 2010
comente sempre no ODP

6/5/10 8:35 da tarde  

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