sexta-feira, janeiro 22, 2010

- o carteiro -

já vimos aqui como por vezes, dentro de um quadro há outro ou outros quadros. Hogarth, Velásquez e um outro cujo nome não me recordo, mas que sei que é muito importante (vou ver se me lembro). Mas o que não vimos, e ainda não tinha conseguido notar que isso poderia ser uma tendência, foi a presença de quadros nos grandes romances ingleses e franceses. O Belogue já tinha falado da presença de Vermeer em Proust, mas relendo umas partes notamos que para além de Vermeer, cuja selecção no contexto da obra coincide com o momento da morte de Bergotte, Proust fala de muitos outros autores como Botticelli (Cenas da vida de Moisés) quando descreve Odete de Crécy, Whistler (Vista de Trouville) quando descreve o seu quarto em Balbec e Manet (A Bunch of Asparagus) quando Proust fala de um serão em casa dos Guermantes, uma família aristocrática. Nessa altura a senhora de Guermantes que apreciava o local onde habitava, mas desdenhava as obras de arte e a decoração para se mostrar uma mulher de espírito e para que os outros valorizassem a sua casa referiu-se em tom depreciativo a uma das obras que estava na parede. Era o quadro a Bunch of Asparagus de Elstir (o pintor das relações de todos) que, segundo ela, havia imitado de Manet. Na realidade, Proust desenvolve uma história dentro da história e da História, uma vez que o quadro foi de facto pintado originalmente por Manet, mas a inspiração de trazê-lo até ao livro, até ao terceiro volume da Recherche foi o facto (penso eu) de uma das personagens da obra de Proust, Charles Ephrussi ter de facto existido. Este Charles Ephrussi foi um crítico de arte daquele tempo e, diz-se, a pessoa que posou para o Dejeuner sur l’herbe. Foi também a pessoa (não a personagem porque este relato não surge no livro, mas na História) que ao ver o quadro de Manet gostou tanto dele que deu ao pintor mais 200 francos para além dos 800 pedidos. Manet acabou por vender-lhe o quadro e pintou um outro de um só espargo, que vemos aqui e que ele fez acompanhar de um bilhete dizendo mais ou menos isto : «Faltava um espargo do molho que levou ».

Edouard Manet
Bundle of Asparagus
1880
Wallraf-Richartz Museum, Colónia


Proust descreve a cena em que a duquesa de Guermantes se refere com desdém ao quadro de Elstir revelando assim uma natureza filisteia:
« disse-me agitando ao de leve o leque de plumas, de tal modo estava consciente naquela ocasião que exercia plenamente os seus deveres de hospitalidade e, para não violar nenhum, fazendo também sinal para que me servissem outra vez espargos com molho de mousseline -, olhe, acho que Zola escreveu justamente um estudo sobre Elstir, esse pintor de quem ainda agora este a ver alguns quadros, aliás, os únicos dele de que eu gosto – acrescentou. Na realidade, ela detestava a pintura de Elstir, mas achava de uma qualidade única tudo o que estava em sua casa. Perguntei ao senhor de Guermantes se sabia o nome do cavalheiro que estava de cartola no quadro popular, e que eu reconhecera como sendo o mesmo de quem os Guermantes possuíam mesmo ao lado o retrato solene, que datava mais ou menos daquele mesmo período em que a personalidade de Elstir ainda não estava completamente definida e se inspirava um pouco em Manet. (…) Swann tinha o atrevimento de querer que comprássemos um Molho de Espargos. Até estiveram cá em casa alguns dias. Mas o quadro só tinha isso, um molho de espargos precisamente iguais aos que o senhor está neste momento a engolir. Mas eu recusei-me a engolir os espargos do senhor Elstir. Pedia pore les trezentos francos. Trezentos francos por um molho de espargos ! Um luís, é o que vale, mesmo temporãos ! »(Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido, vol. III – Do lado de Guermantes, pág. 504-505)


Manet
Bunch of Asparagus
1880
Wallraf-Richartz Museum


No livro de Henry James “Retrato de uma senhora” foi com surpresa que li o seguinte:“A menina Stackpole pode parecer mais entusiástica na sua procura da beleza artística do que pareceu até agora, mas, afinal de contas, tinha as suas preferências e admirações. Uma das últimas era o pequeno Correggio da Tribuna – a Virgem ajoelhada diante do Menino sagrado, que está deitado num leito de palha e a bater palmas para ela, enquanto se ri e grita de alegria”. (James, Henry, Retrato de uma Senhora, Publicações Europa-América, 1996, pág. 441-442)
E quando vemos as obras de Correggio deparamo-nos com esta pequena maravilha sob o ponto de vista da representação da Natividade como algo muito humano. Escrevo “pequena maravilha” porque o quadro, não sendo aparentemente nada de extraordinário, trata o tema da Natividade com uma proximidade à realidade que não era apanágio da Igreja desde a Idade Média, quando o Nascimento era retratado como uma cena de quarto, com a Virgem em convalescença deitada na cama. Deixo aqui um exemplo. Após isso, a Igreja decidiu que o nascimento de Cristo, diferente de todos os outros nascimentos não deveria ser retratado como igual e por isso a condição dos intervenientes tinha de sobrevalorizada para que exaltasse da pintura a sua origem divina.


Correggio
The Adoration of the Child
1518-20
Galleria degli Uffizi, Florença


Por fim, num romance de Sir Walter Scott chamado “Peveril of the Peak” e que fala da saga de uma família e dos seus vizinhos e amigos durante as guerras civis do século XVII. O livro é um dos menos conhecidos de Walter Scott foi escrito por volta de 1823 e no capítulo XXI encontramos o seguinte:

“The horses of both guests were brought forth; and they mounted, in order to depart in company. The host and hostess stood in the doorway, to see them depart. The landlord proffered a stirrup-cup to the elder guest, while the landlady offered Peveril a glass from her own peculiar bottle. For this purpose, she mounted on the horse-block, with flask and glass in hand; so that it was easy for the departing guest, although on horse-back, to return the courtesy in the most approved manner, namely, by throwing his arm over his landlady's shoulder, and saluting her at parting.”

Alexander George Fraser
Figures outside an Inn
Tate Gallery, Londres
Se notarmos bem, a descrição de Walter Scott corresponde na perfeição à imagem pintada por Alexander George Fraser que se intitula “Figures outside na Inn” que apesar de ter sido referida no site da Tate Gallery (local onde a obra se encontra) como ilustração do Peveril of the Peak, tem data desconhecida.

2 Comments:

Blogger alma said...

Beluga,
excepcional este seu post!
ADORO PROUST está lá tudo :)
O I, III e o VII são os meus preferidos.
é difícil determinar qual o mais mas o III é talvez um dos que mais gostei...
Não conheço outro escritor que tenha conseguido descrever a irrelevância da importância na vida com tanta profundidade e beleza

aguardo mais posts sobre o III
agora compreendo a sua ausência :)))

22/1/10 3:25 da tarde  
Blogger Belogue said...

Cara Alma:
A demora não é por estar a ler Proust. Essa tarefa levou-me nove meses. E se fosse hoje não faria o mesmo porque tenho a consciência que li como um romance, mas com mais páginas. O Proust sabe fazer uma coisa que poucos fizeram e que me agrada (penso que a si também): decompôr a realidade em mil pedaços. Ele "esmiuça" o quotidiano, cada gesto, cada minuto. É subtil e mantém-nos suspensos. Foi o único livro que li em que o nome do narrador só aparece uma vez. Ao longo daquelas páginas e sendo ele um narrador participante, é obra. Faz outra coisa: vê a realidade como se fosse através de um caleidoscópio, com muitas variantes. Nem me lembro do que gostei mais, mas acho que foi de toda a forma como ele contou que o Barão de Charlus e o Saint Loup tinham uma relação.

Ah, o único escritor que fez isto foi o Joyce. Não será de estranhar que estes dois se tenham encontrado em vida e acho, pelo que li, que o encontro foi catastrófico: entraram mudos e sairam calados.

23/1/10 1:03 da manhã  

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