segunda-feira, abril 20, 2009

- ars longa, vita brevis -
hipócrates

Esta pintura de Botticelli é bastante diferente daquelas pelas quais ficou conhecido como “O nascimento de Vénus”, “A Primavera”. Neste quadro Botticelli conta um episódio do Decameron de Giovanni Boccaccio: a história de “Nastaglio degli onesti”. Apesar da arte do seu tempo retratar quase sempre assuntos mitológicos e religiosos, e por isso, retratar o passado, havia algumas excepções como esta e o Decameron como literatura do Renascimento foi por vezes o tema escolhido para representar o presente, pois é um retrato fiel do século XIV. O Decameron consiste na compilação de 100 histórias de amor, tragédia e algumas piadas. As histórias são contadas por 7 mulheres e três homens que conseguem escapar da morte na Peste Negra que assolou Florença em 1348. Numa villa fora da cidade de Florença esperam que o tempo passe, que a normalidade regresse e para se entreterem contam histórias uns aos outros.

O conto de Nastaglio é uma história sobre amantes, com final feliz. A filha de Paolo Traversaro, a quem Nastaglio se declara, rejeita-o por achar que a sua (dela) beleza extraordinária merece melhor. Nastaglio entra em desespero, pondera o suicídio, mas os amigos aconselham-no a ir velejar, sair para o mar durante um tempo. De vez em quando os amigos vistam-no e têm longos banquetes nas margens onde ele ancora. Um dia, ao passear pelas florestas Nastaglio vê uma perseguição horrível: um homem a cavalo e acompanhado por cães persegue uma jovem muito bela e nua. O homem salta do cavalo, ataca a mulher, retira-lhe o coração com uma faca e dá-o aos cães para estes comerem. No entanto a jovem levanta-se e continua a andar. O cavaleiro explica a Nastaglio que ambos estão mortos há muito, mas em vida ele tinha pedido a mão dela em casamento e ela havia recusado o pedido. Assim, tal como no mito de Sísifo, o sofrimento é rotativo e infinito: ele terá de sofrer por se ter suicidado e ela terá de sofrer por o ter rejeitado. Isto acontece todas as sextas-feiras, à mesma hora e no mesmo bosque. Nastaglio fica muito perturbado e começa a pensar no seu próprio caso. Convida então a família de Paolo Traversaro para na sexta-feira seguinte se juntar a ele num banquete naquele bosque. Está o banquete a decorrer quando a terrível cena de perseguição e morte dá início. As raparigas que estavam à mesa começam a gritar e a fugir; só Nastaglio permanece calmo e tenta explicar à multidão o significado daquela cena: As mulheres adaptam-se aos desejos dos homens e rara será a mulher do Renascimento que vire as costas a um pretendente apropriado. A noiva de Nastaglio que o tinha rejeitado acaba por casar com ele.

Esta história costumava ser o tema preferido para encomendas que celebravam casamentos por alturas do Renascimento. Era considerada uma forma de homenagear a noiva (Cruzes, credo!!!!). Botticelli pintou o tema repartido por quatro painéis: os dois primeiros painéis mostram o jovem Nastaglio no bosque a presenciar a cena da perseguição e martírio da jovem por parte do cavaleiro. O terceiro painel mostra a cena do banquete com a família de Traversaro e o casamento que daí adveio. O quarto painel mostra o banquete do casamento à moda do Renascimento e com todos os detalhes descritos por Boccaccio. O que é inovador nesta pintura de Botticelli é o tema um pouco violento (eram os prenúncios de uma conversão à prédica de Savonarolla que fez com que o pintor acabasse por queimar alguns dos seus quadros) (asshole!!!), mas também o uso de cores muito fortes e vibrantes. Presume-se que para acentuar o carácter trágico da cena, Botticelli a tenha pintado de uma forma Maneirista (ainda não estávamos no Maneirismo, mas esta paleta cromática é típica do Maneirismo): com cores fortes, momentos quase encenados, grandes cenografias e muitos figurantes. Tudo isto intensifica-se quando Botticelli compara o caos da cena de caça e morte com a visão calma do céu e do mar em fundo.

Já Ballester fez ao quadro de Botticelli o mesmo que fez a muitos outros presentes no Museu do Prado em Madrid: retirou-lhes toda a presença humana reduzindo-os apenas ao seu cenário. Perante isto (talvez este caso de Botticelli não seja o melhor para explicar o que pretendo), é natural que o observador veja apenas a paisagem e não sinta necessidade de ver figura humana. Sente a solidão própria de quem vê um quadro de Bruegel a retratar a vida da aldeia num dia de Inverno, se essa aldeia estivesse abandonada. E quando comparado com um conjunto de quadros semelhantes, nas mesmas condições, a sensação deve ser muito parecida com a visita a uma exposição do alemão Caspar Friedrich. Relativamente a esta pintura em particular, mais do que solidão a pessoa sente o abandono isto porque se não há presença humana há resquícios da presença muito recente de seres humanos na cena: os pratos no chão, a toalha revolta e o banco caído indicam isso.


Botticelli
The Story of Nastagio degli Onesti
1483
Museo del Prado, Madrid



José Manuel Ballester
2008

1 Comments:

Blogger João Barbosa said...

desconhecia de todo a estória deste quadro. boa!

20/4/09 10:53 da manhã  

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