sexta-feira, novembro 09, 2007

- o carteiro -
da (minha) insensibilidade:
Ali perto da Pizza Hut um homem caiu. Era um velhote como dizem na televisão ou um idoso como eu digo. Um idoso caiu. Trazia na mão uma saquinha de plástico azul e lá dentro tinha uma grelha de alumínio nova, brilhante, que ele iria utilizar em grelhados de entrecosto ou de peixe-espada quando a pensão dava para isso. Esta observação acerca da pensão não é entretenimento, é que pela forma como se mexia, como tinha a roupa honradinha, limpa e remendada, honrada, os óculos sujos de gordura mas os mesmos de há muito tempo, e um dente partido no chão. Cuspia sangue, sangrava do nariz não via nada porque os óculos estavam caídos. Ele permanecia numa posição entre o deitado de barriga para baixo e o apoiado no cotovelo direito. Dizia que não se incomodassem, que estava bem, que não era nada, que morava já ali. Não vi a queda, devia vir ainda a atravessar a passadeira perto da rotunda a fazer o meu jogging quando o homem se desequilibrou num degrau minúsculo que separava a calçada portuguesa dos paralelos e ficou naquele estado. Apesar de estar rodeado de muita gente, ninguém se aproximava muito dele. Havia uma espécie de distância de segurança que os outros procuravam manter. Alguém lhe deu um lenço de papel, mas ninguém lhe colocou a mão no ombro, alguém chamou a ambulância mas ninguém lhe perguntou se lhe doía alguma coisa. Diziam-lhe apenas com alguma autoridade: “não se mexa que a ambulância vem já”. Entretanto passou um homem que vendo não poder passar pela frente do idoso, tentou passar entre o corpo no chão e a parede, sem fazer intenções de parar. Mas o espaço calculado traiu-o e não conseguiu prosseguir o caminho. Olhou para o homem que estava no chão quase a pedir-lhe “o senhor fazia o favor de ir tropeçar para outro sítio onde permita a passagem dos peões quando reparou e exclamou: “olha, é o senhor Urbano.” Como que a desculpar-se olhou para cima (entretanto, como se tivesse molas nas pernas, agachou-se de imediato), e em jeito de desculpa rematou: “é meu vizinho. Coitado e tem a mulher acamada.”. E virando-se para o senhor Urbano: “Ó senhor Urbano, o senhor está bem? Sabe quem eu sou? O homem com os olhos piscos e a tentar colocar os óculos que não encaixavam nas orelhas porque a haste estava para baixo, olhou por cima do ombro e disse: “Quem é você? É o coiso. Diga-lhes que não é preciso nada, que estou bem, só preciso de ir para casa. Tenho de ir para casa.”

Entre tudo isto e a chegada da ambulância que não acompanhei, uma das senhoras que acorreu primeiro travou amizade com um outro senhor e trocaram ideias sobre as quedas de cada um, a outra senhora olhava para o homem e dizia aos outros observadores: “uma pessoa que seja mais fraquinha, cai logo. E ele tinha os sapatos assim… tropeçou…”. Um senhor dizia ao telemóvel: “Ó querida vem à janela para veres uma coisa. Estás a ver, estou aqui. Já aí vou ter.” E eu, tal como eles não adiantei grande coisa: não tinha telemóvel, não telefonei, não tinha lenços, não lhe ofereci nada, tinha mãos, mas não lhe coloquei uma no ombro. A verdade é que não tinha nada para lhe oferecer. A imagem ficou-me aqui gravada, mas prossegui o jogging ao som da mesma música animada.