- o carteiro -
Van Gogh
Fifteen Sunflowers in a Vase
1888
National Gallery, London
Naquela noite fui chamado para resolver o caso na mansão dos Greenville, o que me agastou um pouco. Estava bem no meu pequeno boudoir já de robe vestido quando o criado de quarto bate à porta informando-me da chegada de um bilhete. Dizia apenas: “Caro amigo: Uma tragédia abateu-se como o vendaval desta noite sobre os Vila-Verde. Alguém entrou na Sala dos Reposteiros pela porta principal e enquanto jantávamos e retirou da parede o nosso Delacroya que tão bem conhece. Um criado alertou-nos para o latido dos cães e para uma janela aberta que deixava entrar o vento e a chuva na Sala. Esperamos por si para que nos ajude neste momento difícil. Enviamos caleche para que venha sem demora. Obrigada” Estava assinado por Catherine Greenville, a sobrinha do dono da casa, uma jovem deslumbrante que havia chegado há cerca de três semanas de Paris.
No interior da casa esperavam-me o Barão de Greenville, dono da mansão, a sua segunda esposa Albertine, o filho de ambos Gustav (um jovem que estivera envolvido numa cena pouco digna de taberna e prostitutas) e a bela Catherine. Apesar do meu à vontade com a família senti desde logo um certo mal-estar. Não só por ter sido demovido da minha leitura da Toponímica da zona, um livro cujo conhecimento me levava ao êxtase, mas também porque me deparei com um cenário incómodo: o ladrão ou a ladra estava entre aqueles quatro membros da aristocracia com quem tinha o prazer de conviver e agora teria a oblação de dar ordem de prisão. Tudo porque o quadro em questão era o mais valioso de todos e nem por isso tinha um lugar de destaque. O criado que servia os Greenville naquela mansão de campo não tinha dois dos dedos da mão direita e era dextro. Apesar da grande facilidade e necessidade de fazer tudo com a esquerda, sofria igualmente de pé boto, estava velho e ao caminhar necessitava de vários apoios. Não o via a percorrer a Sala dos Reposteiros que nenhum apoio tinha, nenhuma cadeira, namoradeira, aparador a que o pobre se pudesse agarrar. O roubo aparentemente teria sido perpetrado durante a hora da ceia, quando todos estavam na sala a apreciar o faisão que o Barão tinha mandado preparar para a ceia.
Albertine, nervosa disse-me que tinha permanecido a refeição inteira na sala, ausentando-se apenas por dois minutos:
- Para quê, Madame?
- Humm… Ahhhh… Para trocar de sapatos. Os que trazia estavam a magoar-me bastante os pés.
- Tem a certeza Madame?
- Mas claro que tenho, acha que fui eu que roubei da colecção do meu próprio marido o Delacroya? Que disparate.
- Li esta manhã no boletim da aldeia que as suas malas se tinham perdido durante a viagem. Chegou ontem de uma breve visita à sua mãe, não foi?
- Foi sim.
- E sei que é uma mulher de bom gosto, preocupada com o que enverga.
- Claro!
- E sabe que tem o nariz bastante vermelho e a mão bastante escura, empoeirada direi mesmo.
- Escura? – disse ela limpando e ocultando a mão atrás do vestido – Não, não está.
- Escura, no local onde alguns doentes colocam o ópio para cheirarem.
- Ópio? Eu não estou doente.
- Madame deixe-me dizer-lhe o que acho que aconteceu. A Madame não foi mudar de sapatos porque os que tem são igualmente apertados. Desculpe esta minha inconfidência, mas não pude deixar de reparar. Além disso, não tem sapatos, perdeu-os na viagem e como não deixou nenhum par aqui por brio feminino, traz os mesmos com que chegou. Anda a tomar ópio porque, e não quer que o seu marido saiba, os tratamentos para engravidar são muito dolorosos. Foi visitar a sua mãe à cidade. A sua mãe vive perto da Clínica de Preston, mas não estava na cidade porque foi para as Termas. A sua mãe era amiga da minha; as Termas são sagradas…
O Barão, esgotado e desanimado lá me foi desfiando o rosário das suas mágoas.
- Senhor Barão, desculpe a intromissão, mas é minha função…
- Diga! Quero ver o caso resolvido o mais rapidamente possível. E quero o quadro aqui!
- Algo me diz que ainda não deixou esta casa.
- Então e os cães?
- Uma manobra de distracção.
- Então… está a pensar que foi algum de nós?
- Humm… Sim!
- Quem?
- O que fez durante o jantar?
- Ora, comi!
- Soube-lhe bem?
- Sim…
- Como é a relação com a sua mulher?
- A melhor possível. Melhor só mesmo se tivéssemos um filho. Tenho o Gustav do primeiro casamento, mas o rapaz é um bocado estouvado, é da idade. Queria mais alguém. A minha sobrinha é um doce e faz muita companhia.
- E é uma bela mulher.
- Belíssima. E muito inteligente. Percebe muito de arte.
- Ai sim?
- Sim. Está a estudar em Paris no Palais du Jour. Óptimas notas e um futuro brilhante caso necessitasse de trabalhar. Veio cá passar férias. Ela merece. Mas não é minha filha, percebe? Queria que a Albertine tivesse um filho só nosso. Mas a minha esposa é frágil e insiste nos tratamentos para engravidar. E você sabe, eu sou um homem vigoroso, não preciso que ninguém me venha dizer como fazer um filho. Nem permito que lhe toquem!
- Durante o jantar notou algo estranho?
- Não. O faisão estava bem temperado.
- E para além do faisão?
- A Albertine sorria para o vazio, a Catherine falava sobre os bairros pobres que ela viu, o Gustav, o Gustav olhava a prima com espanto e alguma adoração. Não me agrada muito a relação entre eles?
- Há alguma relação entre eles?
- Coisas de miúdos! O Gustav arrasta-se por ela, mas a Catherine, desde que foi para Paris está muito diferente, mais independente, menos infantil. Veja bem que hoje ao jantar contava que tinha os dedos roxos porque tinha ficado com eles presos na sela quando saiu para montar mesmo antes de jantar. E monta sozinha!
- Viu?
- Não, estava à espera do faisão.
- Posso falar com o Gustav?
- Claro. Gustav! Chegue aqui por favor.
- Pai…
- Não sou eu que lhe quero nada, é este senhor.
- Meu jovem, o faisão estava tão bom para si como para o seu pai?
- Sim… O faisão estava bom. Mas porquê essa pergunta?
- Antes do jantar, o que fez?
- Fui levar a Catherine aos estábulos.
- Só?
- Claro. Que mais esperava?
- Já fui da sua idade e Catherine é uma mulher de referência. Vocês são primos, passaram a infância juntos, cresceram juntos, ela foi para Paris, fez-se mulher, você tem saudades e embriaga-se numa taberna perto do cais. Alguém fala dela, você ofende-se com a ousadia de pronunciar santo nome num local de diversão…
- Se aconteceu mais alguma coisa no estábulo? Não, não aconteceu.
- Viu as habilidades de Catherine no cavalo?
- Não, ela repeliu-me antes de montá-lo. Disse que estava com muita vontade de montar antes da ceia e como estava a ficar tarde e a ceia era daí a meia-hora, ela lá foi…
- E durante o jantar, levantou-se?
- Quem, eu?
- Sim.
- Não.
Chegou a vez de Catherine e na minha cabeça a história do roubo ganhava forma.
- Catherine, que prazer tê-la cá.
- Ah, o prazer é sempre meu. Adoro isto.
- Vejo-a mais desenvolta desde a última vez.
- É o que nos faz Paris. Devia ir lá.
- Irei. Mas que desgraça os seus dedos. Estão roxos!
- Olhe, fiquei com eles presos na sela quando me preparava para montar o cavalo antes de jantar.
- Qual deles?
- O Caramelo, não tem que enganar. Se for aos estábulo, vê logo qual é.
- Tal não será necessário.
- Porquê?
- Porque o Caramelo estava lá fora quando cheguei. Apesar de estar muito escuro, “não tem que enganar”.
- Impossível – disse o Barão – A Catherine levou o Caramelo para o estábulo, depois da corrida, não foi?
- Claro tio! Mas o que é que aconteceu ao cavalo?
- E às suas mãos Catherine, o que aconteceu aos seus dedos?
- Já disse, fiquei com eles presos na sela.
- Trilhou os dedos da mão esquerda na sela, ou da direita e ficou com as duas roxas.
- Eu sou frágil. Sou assim… Qual a razão para me tratar desta forma? Estou a ser acusada de alguma coisa?
- Curioso mesmo… A mão que está muito roxa tem força para escrever o bilhete em que me manda chamar.
- Eu sou assim. Eu sou assim. Que quer?
- E mais curioso ainda: afirmava no bilhete que o criminoso tinha entrado pela porta principal da Sala. Ora a Sala tem três portas: uma exterior e duas interiores. A porta exterior que dá para o Jardim fica do outro lado da cozinha, onde estão os cães que ladraram ao ver o cavalo sozinho. Mais ou menos no mesmo sítio onde o vi quando cheguei. Uma das portas internas dá para a Sala de Jantar e a outra para o Hall, onde estão as escadas, através das quais se sobe para os quartos que guardam os pertences de cada um. Catherine…
- Não fui eu. Tio, não fui eu, isto não faz sentido. Para quê ía eu roubar um quadro? Eu tenho tudo, sou rica.
- Como “estudante” sabe que não era um quadro qualquer, era o melhor da colecção do seu tio e com grande valor no mercado. Sabemos também Catherine, que nenhum estudante em Paris nem em nenhuma parte do mundo tem três semanas de férias. E a Catherine está cá pelo menos há esse tempo.
- E os dedos roxos? – perguntou ainda incrédulo o Barão.
- Os dedos roxos são fruto do uso de uma solução muito usada pelos restauradores de arte, e pelos ladrões também que permite separar a tela da moldura com o mínimo de estrago para cada uma delas. Só que quando reage com a pele, esta fica roxa, desaparecendo uns dias depois e gradualmente. A Catherine montou o Caramelo, deu a volta à casa, mas não o deixou perto dos cães. Abriu a porta da Sala dos Reposteiros por fora, dirigiu-se ao quadro, colocou algumas gotas de perpitina na moldura, enrolou a tela e colocou-a dentro do toque de equitação, tapou-o com as luvas e foi lá para cima. O quadro está lá e a moldura deve estar algures dentro da Sala, atrás de algum reposteiro.
- Mas porquê, eu não preciso do dinheiro.
- O seu tio quer ter um filho, o que quererá dizer que a herança será a repartir por três ou mais. A Catherine já não está a estudar e não tem como se manter em Paris. “Não tem o que enganar”.
- Senhor Barão, senhor Barão – gritou o criado, entrando na sala com o seu passo claudicante. Estava isto atrás da cortina. É a moldura, não é?
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